26 de nov. de 2012

60 - AMOR DE MARINHEIRO





A Tobias,
quem o visse olhar
veria nos seus olhos, à distância,
as ondas correndo com a maré.

Mas quem lhe prestasse atenção 
veria nele mais que o mar.
Veria os seus olhos olhando longe,
e, neles,  as ondas correriam com a maré.


( foto do Google image, sem identificação )

25 de nov. de 2012

59 - SOMBRAS





Nesse rectângulo luminoso
jorrando dourado nos meus braços,
há muito mais que apenas a luz do dia
e o azul  do céu lá fora, recortando
toda a alvura da casa.

Há o movimento eternizando-se
das cortinas lentas também brancas,
e a magia além do tema,
das minhas mãos dançando
enquanto escrevem.

Tal como num dia de chuva
quando deixo que chova,
mas com mais folhas arrastando-se
pelo chão, lá fora.

E, de tudo, uma segunda voz
repete sobre a mesa a vida
diluída em sombras.

58 - JÁ É TANTO !





E agora?
Já é tanto,
descobrir em passos erráticos caminhos,
onde todos sempre apontaram apenas
a poeira do destino.
Já é tanto lançar lá longe 
olhares longos como vendavais,
afastando as nuvens vermelhas das tardes inacabadas.

Já é tanto olhar mais perto 
e ver os outros…
Sentir–lhes os passinhos agitados, incessantes,
e ainda sorrir-lhes, 
enquanto vemos por detrás deles
as pedras interrompidas, desesperadas,
cansarem-se de crescer e depois estalarem,
secamente,
exalando o seu último sorriso  
ao transformarem-se em pó !

Já é tanto
viajar  nos brilhos da estrelas e  elevar a mente,
deslocar-se pelo prazer de outras distâncias
que os sentidos jamais acompanharão…
( Quase se conseguem
tocar os dedos dos deuses antigos,
interferindo nas nossas escolhas mais elementares... )

E agora?
Transformámos montanhas em encruzilhadas ?

15 de nov. de 2012

57 - RECEITA PURA





Tempero a minha tinta com pigmentos certos 
em pequenas doses, de que nunca me apercebi.
E são sempre os mesmos, os frascos que deixo abertos,
nessas prateleiras onde guardo de tudo o que colhi.

Não são bem  memórias,   nem chegam a ser  recordações.
São mais  esboços,  algumas coisas apenas começadas,
às vezes  apenas  imagens,  ou apenas  vagas sensações.
Raramente convicções plenas, ou certezas já formadas.

São também fragmentos, pedaços de coisas, objetos costumeiros,
papéis onde lancei linhas como gritos de alma, interrompidos,
arquivos de pensamentos que  se inexplicaram, perdidos,
num mar de acasos  displicentes,  travestidos de ordeiros.

A um pouco de tudo isso, misturo a vontade e a sede do momento.
faço a tinta com que me pinto,  na tela do que vou podendo ser,
em traços fortes de emoção e uma ou outra lágrima de prazer,
até que de mim reste algo mais concreto do que apenas o sentimento.

É dessa forma, vendo  paredes cobertas de tantos pedaços de mim,
que recolhi   em tantos rumos inesperados  por onde me espraiei,
vendo  as marcas do uso dizerem-me quais foram os que mais usei,
que entendo melhor  como, afinal,  sou,  e como me tornei  assim.

E se, nesse processo de tornar-me em mim e  dar-me forma,
me dei a tanto, e em tanta coisa leio o formato da minha mão,
que privilégio conhecer-me assim por dentro, saber-me  razão,
e escolhas além dos acasos, e improvisos além da norma...

Depois encaro os dias, senão refeito, pelo menos renovado.
E se não encontro motivos para orgulho, nessas cores que exibo,
por certo também nelas não encontro razões para o ver ferido
e o meu caminho estende-se em passos de caminho caminhado....

E quando ocasionalmente me esqueço do básico que aprendi,
e dou por mim assim cabisbaixo, e vejo  o triste que eu estou,
olho os meus frascos abertos, pago o preço de ser quem  sou,
e repinto-me com as cores que, aos poucos, para mim escolhi.



Julho 2010 / rev 2012

( imagem do google )

11 de nov. de 2012

56 - SURPRESA




Jamais lamentarei  todas essas noites de breu
gastas relendo-me, já esquecido, noutras datas,
em mínimos passos  gigantes, de emoções  fartas,
tornando inevitável  este  futuro que aconteceu.

Textos  espalhados escrevem-me sobre a mesa.
Vertiginosos, não lhes falta paz.
Apenas me sobra surpresa.

5 de nov. de 2012

55 - COR DESTINO






Talvez haja palavras mais além das palavras mais simples.
Que me expliquem mais em azul, quando quiser  dizer  “céu”,
ou que  façam mais verde a erva  nos campos
por onde galopa, disparado, esse cavalo que monto
rumo ao mais lento de todos  os destinos.

Há-as  mais claras, mais veementes e mais belas.

Mas eu  sou caminheiro antigo,
e busco-as  nas curvas  feitas pelos  caminhos,
nos segredos da poeira  mil vezes levantada,
que mil vezes assentou lentamente sobre o mundo,
-e mil vezes revelou detalhes preciosos
de histórias que ninguém contou.

Venho  dum tempo
em que as palavras eram fáceis e iguais,
preciosas, fáceis de usar.

Soavam, diziam.
e não contavam histórias.

Hoje conto, de todas as vezes,
cuidadosamente,
o preço que pago para que as contem.

E digam exactamente
que cores quero no meu céu,
e como pinto o meu destino.

4 de out. de 2012

54 - QUIS LEVAR-TE POETA




Um dia decidi levar-te, poeta, aos lugares onde se passaram  histórias das quais  já mal me lembro. Clareiras de luz diferente no meio de um bosque que, entretanto, se agigantou em tons de verde pardo e tapetes espessos de caruma  antiga.

Terias apenas de descobrir os gestos de acariciar as pedras que os poetas acariciam, tão conformes às suas mãos veementes.  Terias apenas de enfiar-lhes os dedos por baixo do musgo, aos poucos, em carícias cada vez mais íntimas, até lhes sentires nas palmas os formatos arredondados, e te maravilhares tu também com o calor suave que delas emana, em secretíssimos prazeres.

Darias voz ao mutismo das sombras das árvores, que até aí dançavam só para mim. E mais brilho às lágrimas de resina com que ocasionalmente se traiem, por entre a rude casca, em emoções de árvores, mal dissimulando a sua humanidade.

Quis levar-te e partilhar contigo momentos especiais. E talvez exibir-me um pouco. Talvez, ufano,  quisesse que me visses terminar de crescer, e fosses testemunha de um novo caminho, iniciando-se.

Só não esperava ser incapaz de continuar a surpreender-te. De te ver sabedor das minhas descobertas.

De ouvir-te em palavras, como látegos, sibilando até me atingirem a alma com a fremência das coisas, num paroxismo que me é tão peculiar e, ao mesmo tempo, tão instigante aos sentidos, ditas, as coisas apenas minhas- os guardados de tanto tempo.

De assim permanecermos dependentes e paralelos, depois de tudo, depois de tanto - dentro do mesmo acordo que um dia celebramos juntos, crentes que, algum outro dia, lhe daríamos um fim. Ou talvez não.

Esqueci-me  que tinha desistido.

14 de set. de 2012

53 - FALAR SILÊNCIOS






Houve um dia, já não sei quando,
em que a Rua passou a ser caminho, apenas,
e as vitrinas  não tiveram mais o apelo colorido
dos detalhes efervescendo  a imaginação.
Emoldurando portinholas de mistério,
portões verdes deixaram de fervilhar
os segredos das árvores douradas
pelos fins de tarde, nas entradas das casas.
E as ramagens  não viram mais reflectidas,
em brilhantes espelhagens de  indiferença,
nos olhares frios das vidraças sobranceiras,
as suas formas ondulantes de vibrar com a vida.
E na pedra branca dos muros alvos, brilhantes,
forrados de ainda mais pedra branca,
revistas coloridas deixaram súbitamente
de mostrar um outro mundo e outras gentes,
disposta em arames, exposta em arames,  quais
enormes sorrisos estáticos, arqueados entre pregos,
prometendo  paraísos ao vento,  intermitentes,
seguras com molas de roupa,
- a preços de moedas na calçada…
E todos que passavam tinham nome, e chamavam-se,
e sabiam-se,  e os seus medos eram simples:
temiam não haver mais quem quisesse flores,  
ou  uma revistinha de bordados em ponto cruz, 
ou fruta em saquinhos, cristalizada.

E houve um dia,  já não sei quando,
que passei correndo, cheio de pressa, 
e não vi mais a minha sombra de menino
a alongar-se pelos detalhes dos cantos.
E nem me saudou o reflexo costumeiro
nas vidraças das janelas,  agora fugidio - outro.
E quando me chamaram, não respondi …
mal tive tempo de olhar em volta.
Na pressa foi outra voz, também minha,
que disse olá – também nem sei a quem !
E corri tanto, tantas vezes fui e voltei
sem descanso,  tantas sem rumo crível,
que um dia apenas escutei silêncio na rua,
e vi que já era só um caminho –  e não mais.
E nos olhos com que me olhei,
como se a Rua eu fosse,
e me visse assim, ali,
também não me reconheci no que via.                                                   
E nos olhos com que então olhei a Rua,
toda a eloquência  do cansaço já adivinhado
me disse que não era a minha.
Nem meu, aquele caminho.
Nem eu, quem a estava olhando.

Então construí meu barco, esculpi mil remos,
velejei, remei meio mundo furando ondas,
lancei âncora, nadei, e vim…
Cheguei já caminhando,  e exaurido
pelo no medo de não chegar.
Cheguei oco, estranho, alienígena.
Os outros soando ao longe, como
alguém que não fala os meus silêncios.
Os outros, que não sabem onde fica
aquela  minha rua,
onde tenho absolutamente que passar,
para que deixe de ser apenas caminho.
E para que retome a vida,
e me traga à vida.
E me puxe de volta, me refaça e reconstrua,
e rompa com unhas que o tempo 
transformou em garras,
esse  adiamento que me impus.
E aqueles que me esperam travestido de poema,
ou de mim, ou de mim, ou de tantos que eu sou,
-dos tantos que todos somos-                                                                 
saibam que não estou pronto!

Falta-me ainda encontrar aquele menino
que percorria aquela rua, maravilhado,
sem imaginar que ela fosse um caminho.

Falta-me fazer com que Rua e caminho
se completem com aquilo que agora sou.
E fazer com que ambos me contem
as histórias de mim
que eu não sabia que eram história...


(imagem: creio que City Fog Night de Charles Campbell, colhida na net )


27 de jul. de 2012

52 - MÃO




Na escuridão,
a minha mão, à minha  frente,
brilha de caneta em punho,
escrevendo.
Então escrevo, escrevo, escrevo,
numa ânsia de alma
de quem corre para a luz
deixando atrás de si um rastro
escrito de palavras.
Sigo essa mão
desdobrando-se em surpresas
derramadas,
pelos caminhos escusos
do que vai deixando dito
em pequenos símbolos,
como um legado único
de eterna vontade.
E grato,
sigo essa mão  que carrega
o meus sonhos mais antigos,
e lhes dá voz
muito além do que eu digo...


Novembro, 2007

22 de jun. de 2012

51 - ALMA


Encomendei á  alma
um poema,
mas tudo o que me vai chegando
são apenas palavras-pássaros voando
- planando em noções esparsas,
não em vôos de garças
- de uma poesia 
menor que as sedes do meu dia, 
remota e vaga, 
não um fruto, apenas baga...


(e palavras fracas, confusas,
aspirações difusas
de sombras em becos
onde soam ecos
e vozes em suave agonia...
-não o poema que eu queria !)


Talvez o meu poema, afinal, não seja
essa coisa luminosa, benfazeja,
e chegue por entre as palavras e as vontades,
encolhido em vergonhas de novidades,
subtilezas de bodas só suas,
um cântico ao luar, de sereias nuas...


( 25 de Abril de 2007 )

50 - DUELANDO


( dedicado ao outro, que também sou )




Às vezes, escreves palavras de amor
como se fosse fácil.
Como se não houvesse maiores dificuldades
do que abrir as asas e sair voando alto,
ascendendo rumo ao sol...
Como se fosse possível, assim,
num instante único e de supremo alcance,
pintar em cores felizes
esses quadros que partilhamos,
quando encostamos as testas ao espelho
e reconhecemos no outro, do lado de lá,
as fomes que nos fazem sede,
e as dores com que nos fustigamos.


Às vezes, escreves palavras de amor
como se não soubesses outras,
e, em purezas primordiais,
não tivesses já gravado anseios
em rabiscos de criança, pelas paredes
e nos muros do meu jardim...
E como se não houvesse um preço,
a pagar por todo e qualquer começo,
por todas as coisas iniciadas
sem um rumo definido,
como se fossem um balão mal inflado,
que alguém tentasse encher de beleza,
e que brilha por um momento apenas,
antes de estourar...


Às vezes, escreves palavras de amor
como quem esgrime duais combates
em passos de bailarino,
e gravas na carne dos outros,
em volteios virtuosos
e finos traços de florete,
palavras capazes de furar armaduras,
e derramar sangues...


Às vezes, até escreves palavras de amor
como quem ama, simplesmente,
e despertas-me vontades de , um dia,
apenas pelo tempo de um único dia,
marcado o momento e o espaço,
separarmos as mentes,
desencostarmos as testas
em rígida trégua de vontades,
e vermos o que cada um seria,
olhando o espelho,
a coragem versus a imagem,
e com que armas o enfrentaria...
- se floretes, se sabres ...


14/6/2007

18 de jun. de 2012

49 - VIBRATO


É mais complicado que tudo isso...


Mais  que  apenas  o olho,  ser  o  vento,  
o cisco, a lágrima, 
o sal no trilho aberto em selvas de barba...


Mais que apenas as mãos  em  gestos,  
pontuando formas  e  sentires de momentos  
escritos  em  entardeceres  boreais, perpetuando-se...


ser as carícias táteis, buscando ainda, 
talvez para sempre,  os cálidos vestígios da intimidade única, 
do instante insubstituível  da chegada.


Mais que toques  transacionais, gentis, contando histórias 
onde as palavras são apenas artifícios evocando brilhos escuros
nos olhares, doutra  forma  esquecidos  de  si.


Preciso ser mais. Sempre precisei ser mais.


Tenho de ser a sílaba, 
que encontras e reconheces entre palavras tuas.


A pausa que antecipa o sorriso por acontecer, 
quando me tornas teu.


O tom colorido, na frase monocórdica,
com que me retomas ao desinteresse 
com que me perdi no teu olhar...


Preciso ser mais,
por isso nunca serei completamente teu, 
nem meu...


Por isso nunca haverá nada 
que eu possa ser completamente.
Nem sequer  apenas  um pedaço de mim.


Maio/2010

17 de jun. de 2012

48 - EL BREVE ESPACIO EN QUE NO ESTÁS


El Breve Espacio En Que No estás

Pablo Milanés


Todavía quedan restos de humedad,

sus olores llenan ya mi soledad,

en la cama su silueta se dibuja cual promesa

de llenar el breve espacio en que no está.



Todavía yo no sé si volverá, nadie sabe,

al día siguiente, lo que hará.

Rompe todos mis esquemas,

no confiesa ni una pena,

no me pide nada a cambio de lo que dá.



Suele ser violenta y tierna,

no habla de uniones eternas,

mas se entrega cual si hubiera

sólo un día para amar.



No comparte una reunión,

mas le gusta la canción que comprometa su pensar.

Todavía no pregunté "¿te quedarás?".

Temo mucho a la respuesta de un "jamás".

La prefiero compartida antes que vaciar mi vida,

no es perfecta mas se acerca a lo que yo

simplemente soñé...



Suele ser violenta y tierna,

no habla de uniones eternas,

mas se entrega cual si hubiera

sólo un día para amar.



No comparte una reunión,

mas le gusta la canción que comprometa su pensar.

Todavía no pregunté "¿te quedarás?".

Temo mucho a la respuesta de un "jamás".

La prefiero compartida antes que vaciar mi vida,

no es perfecta mas se acerca a lo que yo

simplemente soñé...




47 - HOMENAGEM A CAMÕES ( pelo10 de Junho )

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades




Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E afora este mudar-se cada dia
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soia.


46 - CASSETAS


Encontrei ontem, mais uma vez, uma fita cassete que andava no porta-luvas do carro fazia um tempão.

Consegui finalmente deitá-la fora, sentindo que se tinham exaurido todas as desculpas que negociava comigo mesmo, no sentido de a manter. O aparelho de som deste carro, não reproduz fitas. Apenas  CD’s. Da mesma forma, o do carro anterior, também não. Nem o outro, antes, nem o anterior a esse. E, com toda a certeza, como enfeite, eu não a  traria comigo... Então, porque a carreguei todos estes anos?

Carreguei-a pelas estradas e pelos calçamentos impiedosos de Itapecerica, inútil, barulhenta e cheia de vibrações, desajeitada de acomodar... - mas aconchegante !  Uma pequena ilha de certezas, imutáveis, no meio de um oceano de coisas mudando muito depressa, no fluir dos meus dias.

Lembro-me de a ter gravado, querendo que fosse eterna, antes de vir para o Brasil. Escolhi apenas  músicas que me tocavam profundamente, e municiei-me de equipamentos de ultimíssima geração, visando a ultra-qualidade. O resultado final foi fantástico, e realmente serviu-me de apoio, constituindo uma espécie de âncora emocional que me manteve estável nos primeiros tempos, neste meu novo país.

Na verdade, até não tocou muitas vezes. Apenas quando já não estava agüentando mais música axé, que entretanto se apossara das rádios vinte e quatro horas por dia, até ser destronada por essa enorme onda monotemática de música sertaneja, que dura até hoje. Pensando melhor, creio que, afinal,  tocou muito, sim. Tocou para valer...

Apesar disso, sempre brilhou como uma pedra preciosa, lá no fundo do porta-luvas, socorrendo-me quando, inconformado com o que me era dado ouvir pelas rádios, ansiava por mais, querendo melhor, diferente, noutras línguas de outros povos, mais variado, mais qualquer coisa que não fosse apenas aquilo.

Mas o tempo, esse danado, trouxe com ele a habituação, o entorpecimento, e o meu ouvido foi-se re-educando para essa nova realidade, tão árida. Aos poucos, outras realidades musicais, outras experiencias, foram ficando mais e mais débeis, menos objeto de desejo, mais amorfas e vagas.

( Neste ponto, abrem-se outros raciocínios, colaterais, quando penso como somos passíveis de ser educados até para a aridez, bastando para isso teimar sobre um mesmo tema, sem permitir temas alternativos. Torna-se clara a importância dos mass-media, e das agências de publicidade, nos seus  caríssimos charlatanismos experimentais...)

E foi também o tempo, inapelável, quem trouxe outros carros, outros aparelhos de som, e a boa da minha fita-cassete foi perdendo a razão de ser, até se tornar nessa inutilidade que carreguei carinhosamente, por tanto tempo.

Como última homenagem, amortalhei-a num guardanapo de papel, procurei um cantinho relativamente limpo, no caixote do lixo, e aí a joguei com um gesto de também desnecessário dramatismo, sentindo que, de alguma forma, alguma coisa se completava nesse ato sucinto, libertador, e estranhamente dolorido.

Pensando a respeito, reconheço com alguma inegável nostalgia, claro, que é perturbadora a existência desse horizonte maior, de que ninguém fala. Mesmo quando cabe numa caixinha de plástico transparente, enrolado numa cassete.

Amanhã, viajando, escutarei a cópia que mandei fazer para CD. Pirata e sem alternativa.

Outubro de 2007

11 de mai. de 2012

45 - NÃO SEI DOS OUTROS




Não sei dos outros, só de mim.

Sei onde as palavras nascem  e se impõem á minha vontade, dum jeito todo delas, que quase sempre é maior que as minhas escolhas. Sei da surpresa que sobrevém, na leitura, ao ver o formato que as palavras tomaram para passar adiante as idéias que as fizeram nascer. É como ler outro autor desenvolvendo um tema que eu escolhi. O tema é-me familiar. A forma que o veicula, não.

Talvez isso ocorra porque as palavras são o sangue do momento, correndo espesso nas fúrias e aguado  no sentimento. Exatas na concisão necessária, e difusas na abrangência preparatória a um determinado estado de espírito. Penhores, quando promessas, mas livres por nascimento. Tendenciosas ao persuadirem, e reveladoras quando confessam.

No que me diz respeito, até as ausências formam palavras. Cruas, quando apenas revelam faltas. Necessárias, quando abrem um espaço, e uma pausa para discussão. Fatais, quando inocentam mas não convencem.  Cruéis, quando maiores que o necessário.

E há também as presenças, nas palavras. As vozes dos outros explicando tão bem o que quereríamos dizer com palavras nossas, que não adianta nem tentar  encontrar formas  melhores de fazê-lo para acabar dizendo apenas isso mesmo.

Talvez seja aqui que acontece o poeta. Aquele que aparece com o enfoque sensível que queríamos que fosse nosso, e traduz em palavras maravilhosas as emoções que ainda só conseguimos expressar de formas mais rudes. Emoções que  ainda verbalizamos mal, mas das quais conhecemos o potencial de beleza, apenas ainda inalcançado.

Nesse sentido, é um ladrão, o poeta. Porque pega o momento, extrai-lhe a beleza que lhe encontrou, e congela-a numa outra escala de tempo, onde ela para sempre existirá sob esse formato enaltecido que agora é dele, marcado com seu ferro pessoal, revelado aos outros, mas negando-lhes a autoria.

No entanto,  a esse instante de beleza eternizada, repercutido em muitas sensibilidades,  somam-se muitos outros instantes, nascidos de tantos outros poetas que congelaram uma miríade de momentos só seus. E, nesse sentido, o Poeta é um multiplicador, dando aos outros uma base que eles tornarão sua, e que os estimulará para as suas próprias interpretações do belo.

Por isso a Poesia progride como uma onda de beleza inescapável, movimentando-se com inércia própria num percurso jamais repetível, que deveria direcionar-nos para uma pergunta de extrema humildade: - é o poeta quem faz a poesia, ou será que apenas a persegue?

Não sei. Um dia copiei á mão um poema e guardei-o. Muito tempo depois mostrei essa cópia a quem o tinha escrito, para que soubesse  como o havia tornado meu, e que fazia parte dos meus guardados favoritos, apesar de saber que não fora escrito em minha intenção. Com isso prestei a minha homenagem ao momento imortalizado, mostrando como me tocara e como lhe dava continuidade.

Talvez por esse motivo, hoje, eu escrevo prosa.  Amanhã, veremos.

8 de mai. de 2012

44 - TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE 3


Qualquer caminho é muito mais do que meramente um percurso, que se retoma após cada nova parada. Para ele, o Caminho sempre tinha sido muito mais do que isso, e os seus passos tinham-no percorrido com uma satisfação renovada pela sucessão dos dias, sempre diferentes.

Os lugares revelavam-se únicos e vibrantes de detalhes, cada um deles um hino soando em louvor a um espaço e a um tempo que ali convergiam, perante os seus olhos, resultantes de  uma infinidade de combinações possíveis.

Os outros caminhantes, quer partilhassem o seu rumo e permanecessem  ao seu  lado por algum tempo, quer cruzassem consigo rumando a outros destinos, continham em si mesmos o fascínio inapelável do futuro deslindando-se a cada passo. Por isso eram raros os conhecidos que encontrava. Quase todos caminhavam perseguindo objetivos e detalhes que variavam a todo o momento, o que tornava confusas e erráticas as suas rotas.

Habituara-se a vê-los ir e vir, os seus rostos mudando sempre.  Eram cada vez menos os que pediam para partilhar a sua fogueira, nas longas noites frias.  E era cada vez maior o numero de pontos luminosos espalhados pela noite, revelando outros pequenos acampamentos espalhados em todas as direções. Isolados.

Acabara perdendo a conta do tempo. Caminhara por muitos anos, sempre animado por esse amor ao Caminho, apreciando-o em todos os detalhes. Enaltecera-lhe a beleza, ajudara os outros quando fora necessário, escutara-lhes as histórias, e tentara sempre guiar-lhes os passos quando os sentira perdidos. Tornara-se aos poucos numa presença habitual, passando sempre, caminhando sempre, carregando consigo notícias de  lugares distantes e espalhando costumes e tradições.

Quando um dia sentiu vontade de parar, não imaginou que fosse cansaço. Apenas estranhou que os lugares, sempre tão especiais e únicos, começassem a parecer-se uns com os outros. Como se o mundo se estivesse copiando a si mesmo, e as flautas dos pastores tocassem, bucólicas, uma mesma melodia em todas as pastagens de todas as montanhas.

Quando realmente parou, construiu o seu abrigo e se rodeou dos seus pequenos confortos, descobriu que essa parada  não era mais do que  apenas um outro passo no seu caminho. Uma outra etapa.

Rodeara-se de pequenos objetos. Coisas sem importância que trouxera de tantos lugares diferentes, e que evocavam momentos especiais, como sumários de emoções. E essas emoções despertavam saudades e novos anseios, entre eles o de partir novamente.

Foi então que percebeu que esse anseio da partida era também apenas um outro passo no seu caminho, tornado fácil por já ter um abrigo seu, de onde partir, e para onde voltar. E assim partiu e voltou muitas vezes, escrevendo em passos a sua história.

Sabia como as marcas dos seus passos eram efêmeras, na poeira dos caminhos.  Era apenas mais um passante deixando pegadas logo pisadas por outros, que lhes modificavam as formas.  E o número dos outros passantes não parava de aumentar, em idas e vindas por toda a parte, reduzindo tudo a traços amorfos, de leitura impossível.

Só nas pequenas cavernas, onde se refugiara das chuvas em vezes anteriores, de vez em quando encontrava vestígios de si mesmo, e da sua passagem. Pequenos benefícios que introduzira nesses lugares. Um chão que alisara, para melhor poder dormir. Uma rocha que escavara para acolher o fio de água que nascia da parede, transformando-o em fonte. Ou pedras, que empilhara na entrada para impedir o vento.

Eram coisas suas,  nascidas do seu trabalho, das suas necessidades e do seu engenho, que muitos tinham aproveitado depois, usando-as e, muitas vezes, acrescentando-lhes alguma coisa, fosse boa ou não.

Mas sempre havia algo que fora acrescentado, e muitas vezes percebia que o lugar fora arrumado e limpo antes de ser abandonado por quem o usara, deixando-o pronto para acolher a quem o encontrasse.  O seu exemplo frutificara. Ás vezes ainda encontrava a vassoura, improvisada duma galhada qualquer. Outras vezes, um pouco de lenha seca, empilhada num canto, numa oferenda anônima a quem chegasse depois . Ou um pequeno fogão de barro amassado, onde se tornava fácil cozinhar algum alimento para recuperar  as forças antes de prosseguir.

Atento, foi notando cada vez mais a existência deste tipo de detalhes, e percebeu que havia uma esperança. Que havia outros viandantes que não se limitavam a passar. Que escreviam as suas histórias em sutilezas que não poderiam ser apagadas pelos outros. E que muitos deles eram jovens, mas já empenhados na procura dos seus próprios caminhos, e firmes nos seus passos.

Essa convicção permeava a sua vida, e esteve presente de todas as vezes que decidiu partir. Sentava-se num pequeno banco, junto á porta já aberta, e calçava a suas sandálias de sola grossa, amarrando-as ás pernas com todo o cuidado enquanto olhava lá para fora, já sentindo o fascínio do caminho que se abria à sua frente.

Depois punha a capa pelos ombros,  o alforge a tiracolo, o cantil do outro lado, e logo que pegava no seu cajado de viandante, os seus passos iniciavam-se com fluidez, como se a normalidade se reinstituísse, e retomava o caminho sem nunca olhar para trás, ou sequer fechar a porta.

Agora, enquanto olhava esses objetos que eram seus companheiros havia tantos anos, decidira que não partiria mais. E percebia que ficar era apenas mais um outro passo ainda, no seu Caminho.

Olhou a mesa, a pena, o papel liso como uma estrada, à sua frente.

Ficou.


TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE III
Março 2009

43 - TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE 2


A mão reencontrou a forma que ela mesma impusera à madeira, muito tempo antes.Com isso, houve uma espécie de estremecimento no mundo, ao redor.  Uma vibração de ajuste.  Um regresso à normalidade. 

A mão segurou o cabo do cajado com fluidez. Percorreu-o  em carícias de dedos até ao castão de prata, onde se abrigava o cristal puro. E estes sentiram a textura, e tatearam os nós, tão conhecidos, num gesto antigo, que sobrepunha doçura á experimentação.

Foi então que percebeu o corpo inclinando-se para a frente, num discreto início de movimento, que logo reprimiu. Os primeiros passos, se os desse, como os pararia ? 

Olhou as sandálias de sola grossa, no chão. Por um momento, pareceu-lhe  que voltava a ouvir-lhes a voz  crepitada de quando caminhavam  esmagando pequenas pedras e torrões de terra pelos silêncios  ermos dos caminhos, enquanto iam absorvendo as  histórias espantosas de  tantos lugares.

Mas as velhas sandálias apenas descansavam na sombra da capa de lã e do chapéu, ambos pendurados na parede, junto á grossa porta de madeira, ao lado do alforge de couro escuro, e do cantil.

Todos esses objetos familiares estavam há muito tempo na eminência daquele instante por chegar, cuja aproximação agora se dava num crescendo de tensão quase palpável.

E todos, pela primeira vez, pareciam perceber que isso era partir. Não mais como das outras vezes, quando apenas iam, sabendo que tinham ali o seu ponto de regresso.

Por isso, tudo ao seu redor foi ficando especial, quase mágico, e uma luz, que parecia vinda do interior das coisas, brilhou suave, e acrescentou solenidade e honra ao momento.

Por cima de todas as casas, uma leve fumaça ascendia,  aromática, enchendo o vale com sutis aromas de abastança.

Espalhou-a o vento, que não trouxe rumores de passos.

Permaneceram  silenciosos  os  cães,  sem  ladrar  limites.

O dia demorou a amanhecer, envergonhado.

Talvez de ser apenas outro dia.                     


TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE 2
( Março 2009)

43 - TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE 1


Caminho devagar, saboreando passos. Sabendo que me levam na velocidade certa, dando-me tempo para pensar.

Caminho apesar de tudo, mesmo quando há na paisagem elementos conhecidos de há muito, ou perante o fatalismo do inevitável.

Caminho em desespero de causa, sem mapa, sem rumo. Deixando que o acaso escolha todos os que quiser, daqueles pensamentos desgarrados em que tropeço sem saber como integrá-los em frases.

Caminho como se estivesse absolutamente seguro da existência de um caminho. Um trilho oculto sob a lâmina de águas rasas, por debaixo das nuvens espelhadas, encastoadas em azul.

Caminho como se caminha, caminhando.Apreciando os segredos do caminhar.

Caminho como se sempre valesse a pena. Por isso o meu caminho é longo.

Por isso, o meu caminho se confunde com o meu destino.

Se assim não fosse, seria apenas mais um caminho.

Um outro fado qualquer.



TRILOGIA DOS PASSOS, O VIANDANTE 1

Fev de 2009

7 de mai. de 2012

42 - A VOZ QUE NÃO FALA DE AMOR



Não, não fala em códigos.

Nem canta o amor.

Não fala pássaro, nem árvore,
nem galho, ou folha, ou verde,
assíncrono na montanha 
de todos os verdes.

Não diz palavras de vidro,
frágeis como momentos.

Suas palavras são profundas
como poços antigos
onde vicejam aveludadas sombras
e gestos, beijos, carícias 
- ricas de ecos,
e prenhes de silêncios.

Fala fogo,  diz vertigem,
freme vulcão rouco,  
queima em lonjuras.

É mato rasgado em caminhos
por entre  espinheiros e escolhas, 
abertas como feridas, na voz,
sempre soando mais baixo
do que as palavras dizem amor.

Não, não há códigos.

E é o amor que canta a vida.