19 de dez. de 2019

178 - DETALHES









Aprendi nos detalhes dos amanheceres.
Procurei entender os ecos do mundo,
nas tardes dos dias, e nas noites.
Quis aprender a canção alegre
das plantas na chuva, quando as folhas
ressoavam murmúrios graves
na antecipação de mais nuvens,
e depois quando choravam de alegria,
lágrimas infinitamente puras
pingando em efémeras poças espelhadas.

Fiz ecos de silêncios ricos de nada,
em que sobravam vozes dissonantes,
passos invisíveis, motores ao longe,
risadas de multidões solitárias, em bares,
e pequenas histórias brevemente contadas
pelo pó dos caminhos
que brisas ligeiras pulverizavam
por sobre os momentos.

Armei-me de tudo isso caminhei,
vaguei pelas planícies longas das palavras,
inebriado pelos álcoois subtis que o espírito
derramava na minha vida e no meu fado
como bênçãos maravilhosas.
Segui olhando em redor, voluptuosamente,
feliz e firme, atento ao mundo e aos outros,
engajado, partilhando, sendo tantos.

E aos poucos descobri olhares de inquietude.
Vozes que não tinham voz, prisioneiras,
retidas ainda num outro tempo vago
de que não sabiam falar.

Aprofundei-me nos pequenos nadas
de histórias ainda por nascer,
e aos poucos foram-me chegando dores e mágoas,
tristezas de passarinhos ímpares
em prisões terríveis de gaiolas abertas,
sagas de vestidos de baile e borboletas
adejando em valsas solitárias
que ninguém entendia.

Soube de poesias ímpares
escritas por músicos que não tocavam,
num flagelo de ressentimentos e
de oportunidades perdidas.
Conheci caminhos abertos esforçadamente
que, depois, ninguém seguiu.

Dei-me a mais conversas. Ensinei caminhos
feitos de palavras que abriam caminhos
que levavam a mais palavras,
tantas vezes partilhando a magia
do que não sabia saber.

Escutei os pontos de vista vagos
da mosquinha alienígena viciada
no isolamento dos cantos das paredes,
até que ganharam corpo e foram voz
e se ergueram em pensamentos belos
sobrevoando a mediocridade de tantos.

Mostrei oportunidades e desfiz-me em sonhos
fortuitos, que não pretendia sonhar,
enquanto lentamente me esquecia de mim,
do que me era vital e compunha.

Criei dramas e personagens, amei com eles,
fiz-lhes as viagens e sofri-lhes as desilusões,
morri mil vezes, perdido nos seus enredos únicos
de filhos promissores.

Depois esgotei-me,
incapaz de manter o esforço de criação,
a duplicidade de vidas intensas,
e precisei parar.

Lentamente, retempero-me
em montanhas vagas e fontes de fantasia,
em hesitações de poeta outra vez novato
que se descobriu subitamente cansado.
Fatigado demais para usar outras
que não a sua própria voz,
ou seguir outros caminhos
que não os seus.


copyrightHenriqueMendes2020                                              

24 de nov. de 2019

177 - PERENE




Quero pensar nesse tempo que passa,
nas palavras que o mundo não permite,
nas esquinas dobradas em escolhas
maiores que a vontade.

Pensar nos caminhos repletos de folhas,
escritas como brotos, em várias primaveras,
e depois cerceadas por despedidas de Outono.

Convidar memórias a que permaneçam
além dos instantes marginais dos instantes,
para serem redescobertas depois
nos brilhos ocasionais das surpresas
tornadas tesouros.

E entender, nas voltas que o mundo dá,
como tudo muda e se esgota em si mesmo.
Reconhecer sentido nos detalhes do necessário,
na página que precisa virar-se por conclusa,
e simplesmente ceder a esse tempo
que nos esculpiu em detalhes efémeros
de algo que seremos sempre,

mas que afinal passou…



copyrightHenriqueMendes/2019

9 de jul. de 2019

176 - A SURPRESA DE HOJE



Hoje, espelho-me em instantes.

Talvez nem me ache nos ecos
daqueles passos
com que um dia cruzei ruas
que nunca esqueci.


Talvez não me encontre, surpreso,
nas páginas cujos cantos dobrei,
há muito tempo,
sem poder imaginar que um dia
elas me apontariam esse mesmo
dedo cúmplice que  hoje lhes aponto, virando-as, saboreando-lhes detalhes e segredos em vagares maiores.



Talvez nem me reveja nas linhas
que atirei a um papel qualquer,
de tantos papéis  ao acaso
no decorrer de uma vida,
sem saber que viriam a dizer de mim
mais do que eu poderia contar.

Talvez nem possa desmontar
as camadas de tempo que se somaram
como crostas em feridas na alma,
nem os medos que se dissiparam
em solidões tranquilas,
ou em urgências que, afinal,
tinham tempo, e espaço, e tudo...

Talvez o que tenha sobrado
de tudo o que foi, ou poderia ser,
tenham sido as escolhas.
As mais profundas,
construídas duma amálgama
feita de vontade misturada
com um fado antigo, forte e
impossível de evitar.

Hoje é o dia, afinal,
que o ontem ainda não saberia ser.


copyrightHenriqueMendes10/07/2019

13 de jun. de 2019

175 - TUDO O QUE NÃO PASSA NO TEMPO QUE PASSA


Não vejo que a cidade tenha mudado.
Continua existindo em sombra e luz,
ruas alegres e becos tristes. 
Vielas onde " o tempo quando passa,
demora mais tempo a passar! "
Às vezes, os faróis dos carros
desenham sorrisos rápidos na noite,
e ficam notas de música no ar 

quando se vão
rumo a não se sabe onde, 

como se o o seu destino fosse
não ter um destino conhecido.
Outras vezes, em vidros sós,
brilham lágrimas de chuva fria,
que não escorrem.
Perlam instantes, e vão-se eternizando
num suspense dramático aos sentidos,
enquanto acrescentam um propósito
a esses vidros que não veríamos
de outra forma, traídos
pela sua transparência.
São gotas que aguardam mais gotas
para juntas escorrerem obedientemente
até ao chão estéril, de asfalto e calçadas.
Atrás de si
deixam um leve rasto molhado no vidro,
que parece ignorá-las,
um leve vestígio da sua existência
que depois se evapora
e a torna invisível.
Não, não creio que tenha mudado
a cidade.
Talvez esteja mais fácil.
Sei onde não quero ecos
dos meus passos.
E hoje não passeio tanto,
apenas cruzo atento.
E sei que nos mesmo prédios
de sempre, cheios de vida,
gentes se reúnem e encontram,
se abraçam e beijam,
se odeiam e amam como sempre.
Sei que os mesmos amantes se aguardam
em ansiedades que imaginam únicas,
porque todo o amor é único
e singelo, e dolorido
como os suspiros
que nem sabemos ter em nós.
Há choros e cantos, louvores, lamentos,
quartos onde a música toca baixinho,
passos nus na escuridão da noite,
corpos fundidos em hipóteses furtivas,
sombras cúmplices e luzes cruas
de vez em quando.
Mas não, a cidade não mudou!
Talvez eu tenha mudado,
apesar de a cidade e da vida
se repetirem como sempre
numa indesmentível beleza
avassaladora
aos olhos dos Poetas.


Copyrighthenriquemendes/2019

22 de fev. de 2019

174 - A FRONTEIRA DOS OUTROS


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Talvez um dia me encontres por aí,
sentado num canto qualquer de algum lugar,
provavelmente rabiscando folhas soltas
ou lendo, com aquele tipo de entrega total
típico de quem não poderia ser diferente.
Ou talvez frente ao computador, 
num outro canto de outro lugar, lançando linhas
noutras vastidões além do papel, 
guardando instantes prenhes de desnecessidades.
Ou ainda, talvez me encontres 
andando pelas ruas, tranquilamente, 
lançado em passos de acasos e surpresas.
Talvez traga ainda, brilhando nos olhos, 
as cores vagas de algum fim de tarde, 
se já for manhã,  
ou talvez ainda ostente  
aquele subtil aturdimento indefinível 
de quem se escutou profundamente
no silêncio  amplificador do amanhecer.
Mas não te preocupes...
Serei sempre eu, mesmo que envolto
na leve neblina duma solidão escolhida,
ou mesmo que coberto por uma espécie de manto 
feito do distanciamento do ruído dos outros.
Terei subido a montanha, talvez,
e buscado aquele isolamento mínimo vital
onde só chegam os pensamentos mais necessários
ao momento imediato, um de cada vez.
Aos outros, estarei provavelmente a escolhê-los,
filtrando-os, elegendo gratas memórias e prazeres, 
banhando-me no sabor doce das pequenas vitórias.
Terei deixado de lado, talvez, a poeira agreste 
do que é para ser esquecido, ou do que não quero lembrar.
Por isso, se me vires assim, não importa onde for,
presente mas ausente, anuindo, deixando que seja,
não estranhes e procura entender.
Há uma parte de mim que ainda deixo como ponte.
Há uma parte de mim que ainda é de todos.
Só a maior parte se remeteu, talvez, a um silêncio 
onde faço as escolhas que, depois, 
reparto com os teus silêncios.


imagem colhida na net, sem indicação de autor
CopyrightHenriqueMendes/2019

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