18 de mai. de 2023

199 - HAVIA UM CAIS




Havia um cais.

Ficava lá depois da última praia.  

Depois do último molhe de pedras amontoadas,

que amansavam às ondas o seu avanço.


E nós esperávamos, ainda longe,

que chegasse a hora certa.

Depois caminhávamos às pressas,

e ríamos quando a espuma que vinha 

já nos chegava aos pés.

E sempre acabávamos a correr muito,

com a água cada vez mais perto, 

apertando-nos contra as rochas

num contra-relógio juvenil,

insano e perigoso.


E quando o areal ia terminando,

e já não havia mais lixo

senão aquele que o mar trazia,

nem se viam outras pegadas 

que não fossem as que deixávamos

-sabíamos que o momento ficava sério.


Parecia que gritavam avisos, as ondas,

e havia grasnados de protesto

nos ninhos das rochas mais altas, 

das falésias cheias de sol.



Mas então já não podíamos voltar atrás,

era o mar que nos empurrava para o cais, 

de medo escondido nos olhares

e nos risos nervosos com que desafiávamos

o momento, apesar de não haver outros

tão alegres nesse mundo em que julgávamos 

que Deus nos deixava ousar destinos.


Por fim chegávamos, 

já com a água espumando nas coxas,

sabendo que não havia  outro caminho.

Ninguém nos seguiria, mas quem viesse

precisaria esperar que vazasse 

essa maré que só agora começava a encher.


E se isso  fazia de nós prisioneiros,

voluntários e contentes,

também nos tornava donos do tempo 

por todo um dia de marés.


Sim, havia um cais.

Tinha um sossego que era todo seu,

mesmo com os gritos das gaivotas

e o marulhar das águas,

o cheiro húmido do sal nas rochas

e o ruído distante da cidade que teimava

em fazer-se ouvir.


Ouviam-se nas tábuas velhas 

vozes que vinham do fundo,

onde ondas rolavam pedras.

Mas nós, apaixonados, 

pensávamos que eram beijos,

segredos entre mar e seixos,

e tudo o que rimasse

com os abraços escondidos 

das águas com os pilares.


E havia também um ranger antigo 

de madeira que se espreguiçava ao sol,

sorria ao sol e, estalando de quente, 

nos embalava  os sonhos lentos 

de quem só pensa em céu azul,

sem nuvens e sem pressas,

e naqueles beijos fantásticos 

que só troca quem é dono do tempo,

e maior do que a vida

- e pouco se importa com as marés…


CopyrightHenriqueMendes/2017