28 de jun. de 2022

194 - SER DO VENTO


 

Eu não parei para escutar o Vento. Mas a sua voz chegava-me como uma carícia antiga e forte, carregando meiguice e conhecimento. Como ignorá-la?

Então entreguei-me e escutei realmente, como nunca tinha escutado antes. E o Vento falou-me de mim.

 

Sussurrou-me aos ouvidos  memórias de criança que eu nem sabia que tinha, nas quais me reconheci por entre lágrimas e alegrias. Eram as raízes das minhas escolhas, sobre as quais me construí.

 

Depois soprou-me por entre os cabelos as histórias dos meus anseios antigos,  das esperanças  e das dúvidas, do empenho dos meus passos ao longo de tantos caminhos incertos, assombrados por tudo o que podia vir a não ser.  Eram as raízes dos meus medos, atingindo-me em arrepios de pele.

 

Mais tarde, num sopro quente, o Vento lembrou-me as histórias das minhas paixões. Falou-me dos amores em que me perdi, e do quanto sofri até me perder noutros tantos que me salvaram. Eram as raízes das minhas procuras, a base de passos erráticos testando os sentimentos.

 

Soprava morno, quando me falou de esperança e de sonhos, do peito mantido aberto para a vida, esperando dela uma carícia que, tantas vezes, não veio como eu esperava. Eram as raízes das minhas ambições, e das metas que queria atingir.

 

Não foi diferente, quando o Vento me falou de morte.  Não lhe pude escutar nenhuma melodia mais triste, nos assobios esporádicos das frinchas das janelas, nem foi gélido o seu hálito. Foi apenas o Vento, mais uma vez, revelando-me as raízes comuns da dor e da saudade.

 

Mas foi especial como uma carícia, quando me falou de eternidade, e me revelou as raízes da minha vontade de criar.

 

Eu não parei para escutar o Vento. E ainda não parei de o escutar. Os meus passos continuaram firmes, como firme é a sua voz ao longo dos meus caminhos, explicando-me paisagens que eu não veria de outra forma...



CopyrightHenriqueMendes/2011

25 de jun. de 2022

193 - E SE UM DIA

 





 

... e se, um dia, eu não conseguir

renascer dessas palavras

que sempre renascem de mim,

se um dia eu não escutar

no meu íntimo um silêncio claro

onde ideias me peçam conclusões,

será então que eu vou parar

num lugar qualquer

de um qualquer lugar,

buscando uma sombra calma

onde tirar os sapatos dos pés

e, com eles fincados no chão,

sentir as vozes mais profundas

que há na terra e o seu chamamento,

se o houver.

Há-de haver águas deslizando silenciosas,

passando, macias, rumo a destinos só delas.

E outras haverá em vozes roucas, agrestes,

ásperas, mas vagas como risadas distantes,

num tremor constante eternizando

combates contra as rochas

duma costa que lhes é hostil.

Há-de haver, hei-de senti-lo,

há-de chegar-me aos pés um calor doce

de colheitas por fazer,

de flores nascendo por aí, num acaso

sem razão aparente,

e algumas vibrações rítmicas de passos

em viagens só suas.

E sonhos! Hei-de sentir a vibração

dos sonhos transformando-se em vida.

E um quase silêncio dos desapontamentos ácidos

atapetando eras inteiras.

Há-de haver risos de crianças, sem razão,

só porque sim, límpidos e despreocupados, claro,

porque não ?

Há-de haver amor, e todos os ecos de mundos

que por ele se descobriram.

E num toque mais morno,

mais indefinido e vago, sentirei aquela

tremura forte, impossível de ignorar,

das coisas realizadas, conquistadas,

obras que foram ficando...

Da terra chegarão aos meus pés forças

e chamados, atraindo-me, convidando-me a ficar,

até que acabe ficando.

 

Mas e se não for assim?

Se descobrir, surpreso, que não vai ser assim,

mas mais imediatamente,

de outra forma qualquer?

Então não pararei num lugar qualquer

de um qualquer lugar,

nem terei tempo de renascer nas palavras

com que quereria dizer adeus.

E nem fará diferença.

Talvez algum outro Poeta as encontre e,

juntos, renascerão por mim.

 

25/06/2022