16 de dez. de 2011

31 - CONTO DE NATAL DE 2011



Todos os anos, nesta época, costumo visitar uma cidade relativamente próxima e regressar só no fim do dia. E todos os anos tenho encontrado  um personagem curioso, abusado, vestido de Papai Noel, que, de uma forma ou de outra, sempre encontra uma maneira de  me importunar, seja pedindo-me alguma coisa, seja  apenas falando sem parar.
Noto que as pessoas o evitam com um sorriso, fogem da sua irreverência algo desmedida, da sua voz trovejante e da falta de limite das suas palavras.
No dia em que o vi pela primeira vez,  o garçon acabara de perguntar-me  o que queria para acompanhar o bife que encomendara, se arroz, se batata, e eu respondera: “Batata!”.  Então o Papai Noel  chegara de repente, sentara-se á minha mesa, e dissera que queria a mesma coisa, sorrindo sempre, olhando alternadamente de mim para o garçom, até que concordei. Afinal, dentro de alguns minutos eu sairia dali num ônibus e não voltaria a vê-lo. Podia perfeitamente pagar-lhe uma refeição decente.
O garçon afastou-se,  e foi então que ele se apresentou. Estendeu para mim uma mão muito suja, que hesitei em apertar, e disse com um sorriso alvar onde faltavam dentes:
-Muito obrigado!  Estou com uma fome de leão ! E deixe-me aproveitar para apresentar-me: - Eu sou o Papai Noel !  Você eu já sei: - é o Batata !
 -Hem ?  Não... Que é isso ???  Eu sou o...
-Batata !
 Não adiantou espernear. Fiquei sendo o Batata.
 E nos anos seguintes, naquele mesmo barzinho sempre meio vazio, enquanto como alguma coisa durante o tempo de espera pelo ônibus, sempre acabo encontrando Papai Noel. E sempre acabamos comendo juntos e conversando, de tal maneira que o garçon, aquele cretino,  – que hoje já é outro – me trata por Dr. Batata, e sempre coloca dois lugares á mesa.
E sempre  Papai Noel chega vindo do nada, nas mesmas velhas roupas surradas, de bolsos enormes, ruidoso, espalhafatoso, sujíssimo. E  já várias vezes perdi o ônibus, e acabei tendo  de tomar um outro mais tardio, por conversarmos tanto. Mas nunca o interroguei a respeito de ser ou não Papai Noel, e ele nunca disse nada menos condicente com o personagem que representa há tanto tempo.
 Este ano, decidi finalmente interpelá-lo. Talvez até entrevistá-lo. Porque não ?
Assim, estava já sentado á mesa quando escutei nas minhas costas o seu vozeirão poderoso, falando em espanhol “- Eres tu, Batata ? ” 
Sorri por dentro, e a força que tive de fazer para não o deixar perceber esse sorriso, a minha alegria por  reencontrá-lo deu-me  a dimensão exata da ansiedade com que eu aguardava este encontro. Levantei-me e abracei o meu velho amigo Papai Noel.
-Si ! Yo mismo ! Pero ahora hablas español ? – perguntei, olhando-o no rosto muito escuro, contrastando com o cabelo muito branco.
-Es que asi no necesitas traducirme !  Verdad ? –  o seu sorriso  era  desconcertante.
-Sabes que este ano quero fazer da nossa conversa uma entrevista?
-Claro !
-Mas como sabes?
-Tinha que acontecer, mais cedo ou mais tarde. Sempre percebi  isso, nas perguntas contidas, que não te atrevias a fazer...E há coisas que um velho Papai Noel sabe por instinto...digamos que são privilégios da velhice...
-Acho que eu fui muito transparente...
-Ah, sim...muito ! – riu ele.
-Então, se és mesmo Papai Noel, porque nunca me deste um Presente de Natal ?
-Hum...vejamos...Quantas pessoas conheces aqui nesta cidade?
-Aqui na cidade não conheço ninguém. Só tu.
-E eu não sou daqui. Eu apenas te procurei, te ofereci a minha mão e a minha companhia.
Eu ri-me, divertido.
-Companhia que foi  jantando ás minhas custas, estes anos todos !
-Bem...Isso foi um detalhe, só para tua satisfação pessoal ! Ficaste feliz, por achares que me podias perfeitamente pagar uma refeição decente. Não foi ? Confessa, vá...
 -Bem… Sim, é verdade...
-Então, aí está...Eu fui o teu presente, todos estes anos.
-Bem...Sim, mas...
-Entonces….vamos a cenar, hombre ! Podemos falar enquanto comemos.
-Está certo ! Não deixa de ser verdade. Confesso que estou um pouco desorientado...
-Acalma-te !  Pergunta o que quiseres...


-Bom, diz-me o teu nome, então...
-Santa Klaus !
-Ah não !  Assim não !  Tu és negro !
Ele parecia surpreendido.
 -Sim !  Desde niño  ! Faz tempo, isso !
-E onde está o trenó, que eu nunca o vi ?
-Bem, sabes...é muito difícil de usar sem neve...
-Mas o teu trenó voa ! Não precisa de neve...
Ele aproximou a cabeça da minha, por cima dos pratos.

- Consegues mesmo acreditar nisso ? E mesmo que fosse verdade,  já viste como está a situação dos aeroportos?

Fiquei sem respostas. Entretanto, a comida chegou. Fomos comendo quase  em silêncio. Num estacionamento  vazio ali perto, um grupo de garotos estava sentado no chão, sem fazer nada. Então, sem interromper o que me estava dizendo, Papai Noel  levantou-se, abriu a janela e tirou do bolso uma bola de tênis amarela, novinha em folha.  Deu um grito para os meninos e atirou-a na direção deles, lá para fora.  Depois sentou-se de novo, e continuou comendo e conversando.

Em pouco tempo a criançada lá fora já jogava um jogo impossível de descrever, com uma bola amarela e improvável. Ele ria, olhando para eles, enquanto conversávamos sobre outras coisas. Aos poucos voltávamos à entrevista.

-E as renas? – perguntei suspeitoso. – Como se chamavam as renas?

-Bobi !

-Bobi ? – repeti eu escandalizado – Mas isso é nome de cachorro!

-Ah é ? – disse ele com um ar muito inocente…

-Claro que é ! O que aconteceu com Rudolpho e as outras , hem ?

-Não sei, nunca as vi ! Quando assumi o cargo aqui, já então não havia renas. Ouvi falar de um churrasco, há muito tempo...

-Churrasco?  Mas isso é uma loucura ! Isso é coisa que se diga?

-Calmate, hombre. No sei se é verdade. Mas nunca as vi.

Comecei a entender tudo. Ele não era o Papai Noel.  Só de nome.

- Entendo...E para as tuas deslocações usas...

- Ah, um velho furgão da Ford, de quem ninguém suspeita, eh eh eh !

- E o que aconteceu ao célebre  "HOU, HOU, HOU" ?

- Isso é só mesmo quando há meninos por perto, claro. Ninguém se ri assim, não achas ?

- Bom, isso é verdade... Mas...e o saco dos presentes...Também não usas, é claro !

- Saco, saco...não uso. Mas olha o tamanho dos meus bolsos... Muito mais práticos. E hoje em dia os presentes são muito menores que dantes.  É um pendrive. É uma caneta bonita. Uns brincos com brilhantes. Um alfinete de gravata...Uma lingerie mais sexy...

- Hein ? – Eu mal acreditava em meus ouvidos. Estava chocado! – Mas isso não são coisas que se possa dar às crianças.  Crianças gostam de brinquedos, bicicletas, carrinhos, bonecas, coisas assim...!

- Nááá!...Eu prefiro os adultos...É uma questão de lógica. Se ajudares os adultos, eles vão dar melhores presentes ás crianças. Se eles estiverem felizes, com o espirito de Natal, eles vão  levar o espirito de Natal para suas casas e ensinar às crianças o espirito de Natal...e isso é o que importa. Não achas ?

Eu fiquei sem saber o que dizer, perante aquele papai Noel negro, sujo, de quem era amigo e com quem jantava hà tantos anos, sempre no mesmo lugar, que nunca vira renas nem trenó, que se achava o meu presente de Natal, apesar de jantar sempre às minhas custas.

Minha cara devia traduzir a minha surpresa, porque papai  Noel riu-se  e disse-me: - Não fiques assim, chocado comigo. A vida é como é. E não é mais do que apenas um sonho, tal como  resolvemos sonhá-lo.

Enquanto  houver espaço no teu sonho para um Papai Noel  com um saco ás costas, descendo pelas chaminés e distribuindo presentes para os meninos - assim será ! Enquanto houver espaço para um trenó puxado por Rudolpho e as outras Renas, guizos soando na noite, e um trenó mágico, voador, que não precisa de neve e voa pelos ares rumo ao Polo Norte, onde fica a fábrica de brinquedos de Papai Noel – não será de outra forma, nunca.

Eu olhava para ele, sentindo que algo importante estava acontecendo ali, naquele momento, e então ele continuou:

-Mas pode ser que um dia só caiba no teu sonho um Papai Noel mais simples, menos mágico e mais humano, que não chegue a tantos lugares. Talvez nem voe pelos ares, num trenó, mas que talvez  tente ajudar aqueles de quem se aproxima – talvez só com pequenos gestos;  um pouco de companhia; uma bolinha barata para os meninos pobres; um saco de comida para os cachorros de rua; qualquer coisa que talvez nem componha um sonho muito grande.  Pode ser um Papai Noel branco, negro, mestiço, de qualquer cor – não vai fazer diferença nenhuma, o Natal é só um dia, no ano. Mas um sonho é um gigante que não morre.

Então, súbitamente, Papai Noel  levantou-se.  E de um dos seus bolsos tirou uma caixa que me entregou.

-Agora tenho de ir-me ! – disse.- Este ano, o meu último ano como Papai Noel,  houve espaço no meu sonho para trazer-te um presente. Quem sabe se no próximo ano haverá espaço no teu sonho para usá-lo ?

Abracei o meu velho amigo, e virei-me procurando uma mesa sobre a qual abrir o presente que me oferecera.  Quando voltei a virar-me para ele, ele jà tinha partido, sem que eu me apercebesse. Voltei a olhar o presente. Em cima da mesa estava uma roupa completa de Papai Noel, novinha e brilhante, com um cartão que dizia: “ As botas, compra você, tá ? “

A minha risada soou um pouco alta demais.  Entretanto, o garçon aproximara-se da janela e ria também. Os meninos do estacionamento tinham interrompido o jogo e assistiam a um fogo de artificio que vinha de um velho furgão Ford estacionado lá ao fundo, ao lado de uma arvore de Natal toda iluminada.

Fui á janela também para assistir, e a criança que ainda há em mim maravilhou-se com as luzes e as cores e as risadas das crianças e das pessoas que passavam.

E não vi nenhum trenó, mas juro que ouvi uns guizos que não esperava e, por cima de tudo aquilo uma inesperada risada de "HOU,HOU,HOU"... pareceu pairar por sobre toda a cidade.

Voltei a olhar a roupa.

Pensei:  ”-No próximo ano, quem sabe?”


(Dez 2011)

13 de nov. de 2011

28 - PROJETO CHIANTI

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Para André Bessa, o mais novo dos meus velhos amigos, que, além de outras virtudes ligadas á poesia e á música - e outras artes não menos notáveis - entende o meu entusiasmo pelo Chianti.





 
Tomaremos, proponho,  esse  chianti  por horizonte,
(pois, neste momento, o que mais me interessa
são os ensinamentos, jamais  tolices, do Bessa),
e  aprender sobre sonetos, uma espécie de ponte.

 E por essa ponte  caminharei em desconforto,
rumo à Arte Maior tida como bandeira erguida,
não usando essa liberdade, sempre tão  querida,
da palavra voando livre, expressão e porto.

 Isto pelo fascínio sempre tido com tais artes,
que não é de hoje, nem  apenas daqui,
mas de outros tempos, e de outras partes.

Por isso, mesmo parecendo antagônicas,
não são de atraso minhas posturas...
- é que ainda estou brigando com as tônicas !   rsss...



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9 de nov. de 2011

27 - TRICKY BUSINESS

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Há memórias
que não podemos procurar.

Arriscamos encontrá-las !
E ao Tempo ...


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Foto: H.Mendes/2010/Musée Rodin/Paris

25 de out. de 2011

26 - SACRÉ-COEUR

A cidade não chega nunca a ser uma surpresa.
Não chega  a renovar-se em gritos, cores, cheiros, atos.
Não...
Acaba repetindo-se  depois de um ponto,  efémero
como uma fronteira escassa.
A cidade morre num carroussel antigo, colorido,
que roda perfeitamente,  teimando  num outro tempo,
como se fosse um relógio acertado por um fuso estranho.

Depois começam as escadas de pedra
por entre verde-jardim  e  degraus subindo sempre,
a pedra impondo-se mais e mais a cada passo lento,
eternizando momentos, esculpindo o tempo.
E nas costas a cidade evanescente  tornando-se  borrão,
detalhes perdendo-se, fundindo-se  num todo
mais amorfo e sem muito sentido.
Impõe-se a pedra, degraus, patamares, pausas.
Alguém  toca harpa, deliciosamente, por moedas,
num  concerto improvisado de costas para a cidade.
Por fim,  a presença dominante da pedra é absoluta,
esmagadora até ao limite dos sentidos.
No alto da montanha a beleza sublime do templo
que os homens extraíram dela  e ornaram de riquezas.
Atrás de mim, a cidade,  já tornada paisagem apenas.
E comigo uma inquietude, um ciciar baixo de vozes
que mais  ninguém parecia ouvir.

Por fim, um movimento mais súbito da cortina de água
numa das várias fontes próximas
tornou mais veemente a  inércia dos rostos
que me fitavam, estáticos, por detrás dela,
em total mimetismo com o lugar.
Creio que alguns me olhavam surpresos por vê-los.
Outros, apenas com a indiferença da perenidade.


Outros ainda, com a sabedoria que a pedra acumula.




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27 de set. de 2011

25 - VAGO


Queria um olhar límpido e vago,
 onde não houvesse mistérios,
mas apenas  a total falta de ansiedade
duma manhã  abrindo-se a outro nascer de sol.
Queria uma erva molhada e um cheiro de sonhos 
remanescentes, em azul profundo.
Campos atávicos entre montanhas
onde  nuvens impossíveis chorassem
 aves insuportáveis, em risos de ave.
E árvores, como dedos erguidos
a um céu impossível de se apontar.

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12 de set. de 2011

24 - PONTO G



Há numa praia da minha infância,
por entre as rochas amontoadas  aos milénios,
um pequeno espaço ignoto e escondido
onde é preciso machucar os pés para se chegar.
Na baixa-mar por ali fica, vagamente exposto,
coberto pela sujeira desdenhada pelo oceano
e pelos olhares de quem atenta mais longe,
preferindo  a dificuldade dos  horizontes
à feiúra  do lixo urbano naufragado.
Na praia-mar fica submerso e muito fundo,
e o pequeno espaço muda de cor

consoante a cor da luz percorre todo o espectro,
num acordo antigo com as ondas na superfície.
E muda de forma e torna-se limpo e são
consoante o mar  flutua o lixo e o leva,
e deixa apenas  aquele  pequeno ponto
que mantenho desconhecido dos outros
encaixando nele uma pedra igual a tantas.


E ninguém sabe, no meu mergulho,
desse tempo precioso que gasto por lá.
Nem do estranho prazer ritualizado
de retirar a pedra-camuflagem e,
no mais improvável de todos os gestos,
do encostar dos meus lábios à rocha áspera
num beijo que castamente me enche a boca
da água doce e pura que ela derrama,
e da celebração de um ato de amor fantástico
entre reinos naturais diferentes,
quase  iniciático e quase perdido.


Quase...

(Sempre há um leve crepitar chiado
de areias em frição, umas com as outras,
movidas pelo balanço cósmico das ondas.
Ou então de pequenas pedras ajustando-se,
ou quiçá corais num aplauso baixinho...
-ou é apenas tempo de regressar á superfície,
antes que a falta de ar já seja tanta
que fique maior que qualquer angústia,
e já não compense mais ter medo,
e a melhor escolha se torne ficar mais um pouco,
e, depois, um pouco mais ...)

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11 de set. de 2011

23 - ALTER EGO

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De vez em quando, lá muito de vez em quando, dou por mim a atravessar uma situação, ou uma fase, ou uma crise, ou algum tipo de novidade que me toca profundamente. E, em função disso somado a tudo o mais que já sou, prevejo que vai chover no molhado, e que se avizinha mais uma mudança em mim - coisa que tem sido frequente, seja em termos geográficos ou em quaisquer outros.

Fico preocupadíssimo e acabo escrevendo textos como este abaixo, que já data da última mudança.

Mas mesmo mudando, lá vou sobrando eu - em restos, talvez. Em todo o caso, o suficiente para me reconhecer ao espelho e naquilo que escrevo. Entretanto, a proximidade de uma fase destas sempre gera um momento de, sei lá ... despedida ! Vai que mudo para um outro qualquer, muito diferente ?  E as saudades que vou ter de mim ?

Por outro lado,  que delícia vai ser descobrir esse outro sujeitinho, heim?


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Sempre há um tempo
( um momento congelado entre tantos )
para se riscar na poeira acumulada dos silêncios
( como quem  o traça em fluidos golpes de esgrima )
o  caracter antigo e de simplicidade inexcedível
( de outra forma destoaria )
com que nos assinamos realmente.
( embora a areia mostre outros passos ensaiados ).

Sempre há um tempo
( o suspense  dolorido entre duas batidas de coração )
em que a distância é como uma estrada ao longe
( onde nos vemos passar acenando gestos de adeus )
por onde desfilam  os vultos de todos os outros
( demoramos a ver que não somos apenas nós )
olhando-nos num gesto  de  soslaio apressado
( repletos dessa mesma inveja que sentimos )
que só nos avalia a serenidade exterior
(ah ! como é doce a tranqüilidade dos outros )
enquanto rumam a lugares onde não queremos  ir.
( embora assolados por vagas de desejos  ).

Sempre há um tempo !
( embora ás vezes falte tanto...)



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9 de set. de 2011

22 - PARECE QUE FOI ONTEM



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Parece que foi ontem,
mas foi há muito tempo.
Uma manhã apanhou-me desprevenido
e lançou-me a sombra grata de uma árvore gigante
sobre umas folhas em branco, à minha frente,
à mesa de um café.
Depois disso, escrevi-me em manhãs,
todas quantas pude.
Escrevi-me em passos hesitantes
pelas alvuras exigentes dos papéis,
que sempre me iam encontrando como sou:
- de olhos quase vagos e quase atentos,
sentindo em redor, como se olhasse.
( Um adulador de detalhes, na opinião de alguém. )
Escrevi-me dispersamente,
espalhando-me pelas histórias
que tantas outras mesas  me contaram,
se sem saber que procurava repetir
a força avassaladora daquela primeira vez,
quando assim me vi, face á sede inesgotável
do papel em branco.
Escrevi-me em instantâneos dos outros, que fiz meus.
Foram segredinhos, surpresas e rompantes,
talvez partículas de passados
a que dei formatos e sons,
presença numa qualquer história
- que existiria mesmo sem mim.
Escrevi-me em rituais estereotipados, sofridos,
escolhas necessárias, tudo em nome de  algo
que um dos meus  futuros possíveis
pudesse eventualmente exigir um dia, quem sabe...
Mas o futuro tardava a chegar,
e era incerto que o identificasse
como sendo o meu...
Então,  parece que foi ontem, 
mas já foi há muito tempo
que me escrevi em passos lentos
pelas muralhas da cidade,
e em todas as fachadas brancas
das casinhas sorrindo para o sol;
E em cada rua calçada de pedras antigas
ecoando vozes de crianças;
E em todos os cais, 
e no ruído quente de todos os bares,
e caminhando nas noites
que os outros evitaram receosos.
Em todas me escrevi, com um olhar de adeus
onde havia uma lágrima
que humedeceu outras terras,
muito além do solo onde cravei os pés.
Escrevi-me em cânticos inúteis de louvor
a valores desnecessários,
e em registos de memórias merecendo serem vagas.
Escrevi-me em buscas que jamais terminarei,
e em sonhos que jamais  saberei parar de sonhar.

Parece que foi ontem,
e nem tem sido há tanto tempo...
Escrevi-me um pouco por toda a parte.
Encontrei-me um pouco por todo o lado.
Li-me entre pilares de pedra antiga,
erguendo-se de águas infinitas até ao horizonte,
que marulharam  versos meus
repletos de sal e de destino.
E de lugares por saber...


Out/2011


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9 de ago. de 2011

19 - SONETO INCOMPLETO








Deveria a flauta ter-me dito,
ou então  cântico vindo da terra,
(Géia  lasciva, lúbrico agito,
vozes  no sangue, frémitos de guerra...), 


que nesse inexcedível por de sol
morre uma eternidade singela.
Canto, nota insustentável,  bemol.
Melodia única sempre bela. 


Frase silente de feliz efeito,
dedos  cercando  a nota perfeita,
bisel  traduzindo um do de peito

7 de ago. de 2011

18 - TEMPO RASGADO





Pisei naquela linha distante.
Naquele limite onde o tempo se rasga
e a vida fica algo estranha,
e todos os valores  cedem um pouco,
se acomodam e ajustam
com aquele som  de pano puído
que finalmente se esgaça,
abdica da complexidade objetiva da trama
e se reduz a fios soltos.

Isolados, são fios também,
mas não são mais aquela rede colorida
onde sonhei adolescências
em tantas tardes de calor inquieto. 


Isolados, não me darão nunca mais
aquele balanço ocasional,
sem ritmo nem persistência,
que um calcanhar esquecido no chão
imprimia esporádicamente. 


Isolados, são apenas fios
retomando a sua identidade própria,
mas meros detalhes, afinal,  duma história
que só juntos poderiam contar:
a minha história, de mim. 


Isolados, são como palavras desconexas,
que não formam frases.
Que, no máximo,  soam à saudade
duma rede balançando em
tarde quente...


(foto colhida na net, sem créditos )


16 - MENOS GLÓRIA








Encontro cada vez menos glória
na glória das manhãs.
E menos limpidez nesses céus
onde o azul era tão puro,
que as pequenas  nuvens brancas
pareciam não passar de erros
realçando a perfeição.
Agora, parece que encontro menos
daqueles verdes com que a terra-mãe
se canta em alegrias, e sinto menos alegres
todas as outras cores
com que florescem, pujantes,
os  seus segredos  incontidos.
Estão soando monocórdicas,
as vozes dos passarinhos...
-alguma vez terão sido mais
do que imprevisíveis e alegres,
ou foram sempre assim,
uma algazarra desconexa de piu-piu-pius
a quem a nossa imaginação
se encarregou de atribuir significados ?
Não estou encontrando caminhos 
para os meus passos de poeta.
Idas rumando a algum lugar
que faça ainda um mínimo de sentido,
onde não me perca de mim,
nem da história que escrevi  com a alma,
mais do que com o corpo,
em cansaços e cicatrizes.
Nas sombras das raras árvores
dos meus caminhos,
não há mais recantos de poeira intocada,
entardecendo melancolias.
Não há fontes  sem lixo,  cristalinas 
e acolhedoras  a um repouso,
nem curvas de rio onde  as águas  remansem
em brilhos de prata
as histórias dos lugares a montante,
em noturna languidez,
ou onde acolham meu banho cansado,
purificador, ao luar.
Está cada vez mais difícil.
Bruxuleia  a  verve.  O gênio diluido no sangue. 
O dom.
Os poetas já dizem pouco.
Dos poetas, já dizem tudo.
As lojas,
em breve venderão fantasias de poeta,
como vendem de dinossauros
– extintos  e na moda.
Um  poetosaurus-rex. 
Um tiranegócio-rex, às vezes, em rima...
Não sei se vale a pena.
E nunca pensei se tenho escolhas !

( imagem colhida na net, sem créditos )


5 de ago. de 2011

15 - SOB O RIO





Há um outro rio,
por baixo do silêncio.
Águas vivas, correndo rápidas,
tateando emoções em leque
como se fossem passos agitados,
rumando todos os nortes possíveis
- ou apenas palavras traindo-se,

entregando-se em sublime nudez,
tempo afora,
contando as histórias do silêncio...

( foto colhida na net, de origem desconhecida )
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8 de jul. de 2011

14 - JAMAIS TE SONHEI MAR






Jamais te sonhei mar,
imensidão, infinitude.
Mas sempre ambicionei
que em ti o meu nado
fosse poema e deslumbramento,
carícia total em gesto conhecido.
Elegância escolhida sempre.
Sempre quis que as palavras
fossem passos paralelos dando voz
a caminhos convergindo ao sublime.
Por isso nunca me seduziram os murmúrios
nem as mensagens pouco firmes das lágrimas,
em emoções que a dúvida profana.
Por isso nunca olhei menos longe
que a distância confortável da abstração,
onde se difusam as formas e os medos.
Por isso nunca disse em sussurros
o que o peito me ordenava aos gritos.
Por isso tantas vezes calei a alegria
da erva molhada das manhãs,
insisti em não entender céus luminosos
e fiz-me surdo a dobrados de sinos bucólicos,
que me remetiam a outros tempos
- onde o tempo ainda não era um luxo
e, resultando de um lento passado,

preconizava um futuro

onde tudo estava por escrever.


( Henrique Mendes )
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24 de jun. de 2011

12 - NÃO É MELANCOLIA








Não é melancolia.
Nenhum tipo de vaga tristeza
sem foco ou sentido objetivo de ser.

Não são saudades,
nem fugas da memória em rumo
a algo deixado lá para trás,
e agora envolto numa neblina de distância
que lhe retira a frescura da vida em primeira mão,
e o sabor - doutra forma inalcançável – da surpresa
sabiamente revelada pelo destino, passo a passo.

Não é falta sentida,
além das boas memórias enraizadas no meu cerne,
carícias assimiladas, hoje na génese das minhas escolhas.

Não é profundidade almejada
para os gestos simples, deixados simples,
que me revelam antes de serem contidos, sofreados,
em atenção, tantas vezes dolorida, aos outros.

Não é nada disso.
Mas talvez seja um pouco disso tudo,
um restinho do tanto que já disse,

do tanto que já me disse,
mas que sobrou, que não foi expresso em palavras,
e que se acabou ficando por um rápido etcetera.
Hoje decido que seja etletera.





(foto de Henrique Mendes)

13 de jun. de 2011

11 - SERIAM PALAVRAS


Seriam palavras, se as houvesse.
Se pudessem dizer mais, daquilo que importa.
Se com elas se construíssem ninhos para onde voássemos,
quais pássaros livres mergulhando ás alturas,
falhos de lógica, em quedas só nossas,  ascencionais,
seguindo os caminhos secretos do instinto
e as vozes antigas no sangue grosso,
quando gritasse exigências.

Seriam passos, se ainda os houvesse por dar.
Ou se fossem ainda necessários
para chegarmos onde já estamos sempre.
Se houvessem ainda caminhos a percorrer,
e se, percorrendo-os, diminuíssemos duma vez
as distâncias e os medos que nos separam de nós.
Seriam passos–ferramenta escavando um futuro
numa falésia rochosa feita de outras dificuldades.
Mas são apenas os dias escoando-se desperdiçados,
deixando atrás de si uma fome especial feita de desencontros,
de mal entendidos que talvez temamos bem-entender,
e, neles, as palavras revelando-se insuficientes,  soando ocas,
e os passos tornando-se caminhos sem rumos definidos,
desenhando pegadas em  mapas fortuitos, num ladear de destinos.
Por isso ás vezes me desloco para  um outro mundo, desenquadrado,
sem regras nem tempo medido, nem assinado embaixo,
onde procuro que não haja esperança excessiva  nem mel a conta-gotas.
Um meio que seja um outro meio , talvez num tempo diferente,
onde quero as palavras como fortes mas singelas carícias,

e onde os gestos ecoem os adejos das  asas  brancas de criatura aladas,

ajoelhadas perante a  missão primordial de serem felizes.


Um meio e um tempo “entre” , onde subsisto numa história  crua,
e onde  me escrevo em prazeres onânicos e simples
enquanto os momentos  se revelam em  concordâncias fantásticas,
onde a verdade, como uma pimenta, se acrescente á ficção e ao mundo.
Em redor sobram as cascas das horas  terçadas como armas,
e  as identidades desperdiçadas perambulando pelo Caminho.
Como um Fado.