18 de abr. de 2020

181- O GAIVOTA



Orange Generation' | GMB AKASH



Na praceta aqui por detrás de casa, há uma loja de chinês. É uma daquelas lojas que tem de tudo um pouco, de um tamanho já razoavelmente grande, e que está aberta desde as nove da manhã até às nove da noite todos os dias do ano.
Há uns anos atrás, apareceu-nos o dono, que já conhecíamos, com o cabelo pintado de cor de laranja. Quase não fala português, mas foi capaz de entender quando a minha mulher, ainda embasbacada da surpresa, resolveu elogiar: “-Muito bonito!”. Acenou vagamente com a cabeça, mas não disse nada. Esse foi o momento de ele ficar admirado. E da minha mulher ganhar um fã.
Daí em diante, passou a cumprimentar-nos com um gritinho estridente, sempre que nos vê na rua. Parecia um grito de gaivota, e demorámos algum tempo a perceber que a gaivota era ele, com olhos muito abertos, sorriso contente e cabelo cor de laranja. Um personagem e tanto. Claro que o batizámos imediatamente, e daí em diante ficou sendo o “Gaivota Maluca”.
Mas o tempo passou, o cabelo do rapaz foi escurecendo, mantiveram-se o sorriso e a gentileza para connosco, e resolvemos aligeirar o nome para “Gaivota”. Apenas.
Da janela da cozinha, vemos uma das entradas da loja do Gaivota. E a toda a hora o Gaivota entra e sai, guiando um pequeno furgão, sempre atarefadíssimo, trabalhando, trabalhando. Num pequeno pátio ali do lado, brincam os seus filhos, que entram e saem da loja junto com os clientes que são muitos.
Na praceta, de manhã, antes da loja abrir, sempre há gente esperando. Uns dentro dos carros, outros simplesmente em pé, conversando ou não. Da loja dos Correios, depois de receberem as suas pensões, chegam muitos idosos. A loja do Gaivota, mais que um comércio é já um ponto de encontro. Uma instituição, diria eu.
Nesta hora de vírus chineses, receei que as pessoas destratassem o Gaivota, mas não parece ser o caso. Não me parece que o vejam como diferente, ou que façam qualquer associação aos vírus ou que, mesmo remotamente, o culpabilizem seja pelo que for. O tempo o dirá, mas creio que no imprevisível inconsciente coletivo, o Gaivota faz parte do nosso rebanho. Tem os nossos medos, tem filhos como nós, também paga impostos, trabalha como um condenado, e é tão vítima como todos os outros desta época de quarentenas e de limitações. Parece-me inocente quem tem uma loja cheia de mercadoria que não pode vender por ser obrigado a mantê-la fechada. Tal como o me parecem inocentes todos aqueles a quem está sendo impossível ganhar o seu pão com o seu trabalho.
E, assim parecendo, perco-me em reflexões a esse respeito. Nessa história toda, da disputa crónica pelo poderio, pelo armamento, nessa tentativa eterna, diária, de impor ideologias mais do que fracassadas, condenadas e condenáveis, não me parece que haja inimigos nos outros povos. Não me parece que haja problemas de raça, de crença, de vontades. Claramente parece haver problemas sérios, sim, mas nos governos que deixaram de nos representar, para se representarem a si mesmos. Governos que não hesitam em nos usar como massa de manobra, carne para canhão se lhes aprouver a guerra. Que se defendem a eles mesmos e que se eternizam, que nos esmagam as vontades e as esperanças, que não nos consultam mais.  Que nos enredam em leis que já deixamos de entender, para protegerem corruptos, corruptores, servos de ideais escusos e com carteiras bem recheadas.
Veremos o que os novos tempos nos trazem. Se retomaremos a normalidade, ou se vão tentar ensinar-nos a odiar o Gaivota.  Veremos se lá, noutro lado qualquer, tentarão  ensinar a odiar gente comum, como nós, seja por termos cabelo cor de laranja, por sermos de outra raça, termos outras crenças, sermos bonitos, feios, ou assim-assim...


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