25 de dez. de 2017

157 - 2017, PALAVRAS DE NATAL DE UM ANO COMPRIDO







Mantenho a tradição e escrevo algumas linhas de fim de ano, como faço sempre, sem saber bem porquê.
Claro que não há nisso um lucro muito evidente, mas gosto de pensar que a mais este ano conseguimos sobreviver, eu e aqueles que me lerem.
De todos os anos, há uma espécie de substrato emocional que fica. É algo assim como aquela última gota de sumo que, se quisermos, conseguimos ainda obter duma laranja que já foi espremida até ao fim.
Apertamos, apertamos mais e mais, com a mão já tremendo por causa do esforço, e por fim lá aparece a gotinha, isolada e tímida, a agarrar-se aos dedos como se estivesse reticente em soltar-se deles e pingar para o copo.
Assim mesmo, sendo a última, traz todas as memórias do fruto. E é por essa derradeira gotinha que o lembraremos, bom ou mau, doce ou amargo, com satisfação ou com desilusão. Ou algo indiferentes por não ter sido nada de especial.
Para mim, o ano que finda é como essa última gota. E  é com essas linhas que sempre escrevo que guardo o tom,  a sua vibração  e impacto na minha vida, enfim, o sabor do ano que passou.
Claro que toda a avaliação é pessoal, e escolho ficar em silêncio quanto aos detalhes mais particulares e  mais corriqueiros da minha vida, dos quais não poderia queixar-me.
Mas no todo, foi um ano amargo e cheio de catástrofes, no meu país como em muitos outros. Algumas delas naturais, como incêndios, tornados, terremotos.
Outras, menos naturais, foram-se sentindo à medida que foram ficando claras algumas realidades. Por exemplo, foi-se tornando óbvio, claríssimo, que o nosso planeta está muito mais ameaçado do que se pensava.
Para não mencionar mais nada, milhões de pessoas morrem de sede, e a água já é uma commodity de lucro garantido.  Apetece perguntar se falta para que o seja.
O tanto que fizemos de errado, por puro desconhecimento e ignorância, é gigantesco. E o que fizemos de errado, mesmo com conhecimento  e sem poder alegar a ignorância como desculpa, é mais do que gigantesco - é criminoso. 
Vertiginoso e infame, porém, é o que não fizemos. O que deixou de ser feito, mesmo sabendo do que se estava  a passar. É uma vergonha !
Isso e a noção de que o cidadão, individualmente,  pouco pode fazer para mudar seja o que for,  deixa muito evidente o que tem sido a actuação dos políticos de hoje no mundo todo.
De substancial não fizeram quase nada, além de aperfeiçoaram a política como método. Evoluíram-na, de algo que era uma espécie de arte na convivência inter pares daqueles que se dedicavam a ela, servindo o povo, para uma ciência fria e abstrata que os perpetua no poder em jogos de compadrios, transformando o povo num rebanho sem esperança e sem voz, obediente por falta de opções reais.
Hoje, os políticos, todos eles em nome dum vago povo de costas largas, são quem manda e desmanda.  Não são mais servidores do povo a quem fingem servir e proteger.
Dos seus desmandos, corrupção e falta de mandos, tornaram-se claras algumas consequências impensáveis e imprevisíveis.
Tornou-se público que nunca houve tanta escravatura como hoje, no mundo. Nunca os escravos foram tão baratos, na História da Humanidade. Pelos cálculos mais amplamente aceites, é de crer que existam entre 12,3 milhões e 27 milhões de escravos apesar dos mais de 300 tratados internacionais e convenções, produzidos pelos políticos, que exigem o fim da escravatura. Fazê-los é fácil e dá votos. Fazê-los cumprir na prática é toda uma outra conversa.
Também se tornou público que o mundo mudou, em grande parte devido à crescente electrónica de consumo, que possibilitou como nunca antes um acesso fácil e muito rápido à informação através das redes sociais. E tudo isso é desejável, social e economicamente. Mas está tendo preços altos sobre o dia a dia. 
Aquela imprensa tradicional, reconhecida como bastião da liberdade, perdeu terreno e agoniza perante a onda gigante de iletrados e desinteressados - tendo sido a existência de  ambos estes grupos convenientemente estimulada em prol da apatia.
Essa imprensa está hoje extremamente dependente de subsídios vindos de governos que ela não pode contrariar sem graves prejuízos para a sua própria subsistência. 
E muita da nova imprensa virtual, mais alinhada com as novas correntes sociais/digitais, é oportunista no seu conteúdo, na esperança de ser reconhecida financeiramente por quem está no poder.
Sem imprensa livre e discordante, quando necessário, prospera a impunidade, o roubo e o desmando. Do nepotismo nem é bom falar.
Graças a tudo isso, e ainda ao doutrinamento político nas escolas, é fácil governar através das redes sociais e para as redes sociais. Acéfalas e com pouca auto-crítica, engolem tudo. Basta ter especialistas para criar os grandes grupos seguidores necessários. Se assim se vendem sabonetes, porque não se venderiam ideologias ?
Finalmente, outra coisa que se tornou óbvia neste ano que finda foi a dimensão do policiamento ideológico, e como isso se tornou numa ditadura imposta ao mundo pelo chamado políticamente correcto. 
Reescreve-se a História através de repetições  sem fim de factos "alternativos" e convenientes. Amordaça-se da pior maneira: em nome da liberdade e da democracia. Ai dos discordantes de certas ideias, mesmo que estejam erradas e em nenhum lugar se tenham provado eficientes. Ai deles! 
E assim, o nosso mundo caminha inevitávelmente para a guerra, repetindo erros anteriores que não o deixam corrigir. É o desencanto.
Poderia ainda acrescentar mais angústias e desagrados ao ano que agora termina. Como se isso fosse necessário, e não é,  para o tornar um dos piores e mais preocupantes de sempre...


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26 de nov. de 2017

156 - TODOS OS AMIGOS





Todos os amigos que não tive
me deixaram no peito, em aberto,
um buraco largo e sombrio,
profano e sem remédio.

Mas todos os que tive foram bons
e procurei dar-lhes o carinho certo
para trazê-los até hoje,
numa valsa que o tempo dançou.

Também foram excelentes
os que imaginei ter, e me levaram
a ser melhor buscando os caminhos 
da reciprocidade fértil 
-mesmo que desiludida.

E a todos os outros, que o não foram,
devo-lhes o tempo poupado
em reticências.

Que o tempo nos traga mais a todos,
neste dia e sempre.


1 de nov. de 2017

155 - DESENCONTROS







Costumava sentar-se  num pedregulho enorme, mais alto que o muro do jardim, e dali, solitáriamente, observar o final do dia, vendo o sol rodar por entre as árvores até sumir completamente, lá longe, por detrás do mar.

De lá, olhando para baixo, podia ver o velho jardim abandonado e, nesse dia, sentiu-o diferente. Até o regato que o cruzava já não era a mesma velha presença de sempre, triste e murmurante, um lúgubre contador de  velhas histórias, contadas e recontadas durante dias e noites sem fim. 

Imediatamente notou a presença  de uma mulher e, do lado de fora do muro, um homem. Não querendo ser visto, ficou muito quieto,  condenando-se a presenciar algo a que não queria assistir e  tornando-se um espectador involuntário de algo que parecia ser  um quotidiano que não era o seu.

Aos poucos,  a luz dourada do final da tarde e  o insólito da situação criaram um momento especial, um momento mágico, que o levou a identificar-se com esses dois estranhos que agora observava.

Ela, extasiada, parecia sentir pela primeira vez a presença amiga do regato bordado a prata, e aqueles doces gritos de vida que eram as flores, a dádiva que o mundo do belo lhe oferecia em cada folha amarela e solta, rodopiando no ar até cair a seus pés. 

E os sons, todo esse mundo inebriante dos sons, parecia apontar para coisas ignoradas, trazendo até ela cantigas de amigo no murmúrio das águas, carícias no suave hálito do vento.

Tudo, de uma forma absoluta e irredutível, parecia conduzi-la para dentro de si própria, para formas insuspeitadas de volúpia e ternura, para sensações e necessidades que  não sabia entender.

Sentada junto à água espelhada, receando ter-se atrasado mas esperando, assistia fremente e angustiada à passagem do tempo, vendo as flores que o regato transportava de vez em quando, trazidas já do outro lado do muro ao fundo do jardim, sob o qual as águas pareciam nascer...

E do outro lado desse muro estava ele. Mago sem cartola nem diploma, em pé e absorto, segurava um cigarro apagado entre os dedos e olhava o relógio distraidamente, certo de ter chegado demasiado cedo.

Tenso, encostado a uma árvore tombada junto do regato, e como que marcando os minutos, de vez em quando estendia lentamente um braço para trás de si e, colhendo uma flor, atirava-a para a água.

Depois ficava a segui-la com os olhos, observando o seu deslizar lento – demasiado lento – até ela desaparecer por baixo do muro que ele, pouco depois, cheio de incertezas, saltaria.

De ambos os lados do muro a tarde conivente esvaía-se,  preguiçosa...


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27 de out. de 2017

154 - A VARANDA DE VIDRO




Os passarinhos costumavam entrar  na varanda para comer, e apanhavam minhocas nos vasos e migalhas no chão enquanto saltitavam alegremente dum lado para o outro, felizes e contentes. 

A varanda rodeava toda a casa e, vendo como os passarinhos gostavam de brincar por ali, os donos da casa colocaram dois bebedouros para eles. Foi um sucesso, e em pouco tempo o lugar ficou famoso. Vinham passarinhos de longe, brincando uns com os outros, para comer e beber. 

Eram de todas as espécies e de todas as cores, e coloriam o mundo enquanto batiam as asinhas e tomavam uns banhos agitadíssimos que espirravam a água longe.

Mas sempre que alguém se aproximava e entrava na varanda, os passarinhos fugiam com medo, sem perceber que ninguém pretendia  fazer-lhes mal.  Tristes com isso, os donos da casa resolveram fechar  com vidro as enormes varandas, deixando lá dentro os passarinhos.

Primeiro, foi um desespero. Os passarinhos não sabiam o que fazer, e voavam contra o vidro.  Muitos batiam com força e morriam. Muitos morreram.  Depois, aos poucos, alguns se habituaram a viver naquele espaço fechado por paredes que não se viam. E os filhotes que eclodiram dos seus ovinhos, já cresceram conhecendo os limites invisíveis daquele luigar perfeito que eram as varandas. 

Havia muitas espécies de plantas, tinham água e comida, e não havia predadores. Mesmo os gatos da casa ficavam sempre do lado de fora, escondidos entre as plantas que cresciam encostadas à parede invisível.

Claro que os passarinhos de dentro olhavam com muita curiosidade os outros  que vinham pousar nos galhos dos arbustos do jardim, e acabavam chilreando uns para os outros em irmandades de passarinho. 

Também aos poucos se habituaram a conviver assim divididos, sem que nenhuns deles entendesse muito bem o que era aquela enorme vidraça que era algo assim como uma parede que não se via, e que os separava quando tentavam estar juntos. Apenas isso. 

Assim mesmo, todas as manhãs, naquela hora em que os passarinhos decidem que o dia deve começar,  havia dois que sempre se buscavam e ficavam, um de cada lado no seu galho, piando, amigos de longa data.

Um deles era gordinho, com penas luzidias e lustrosas. Vivia dentro de uma casinha que alguém tinha escavado num pedaço de tronco de uma árvore velha, e que agora ficava num dos cantos da varanda. 

O outro, do lado de fora, era mais magro mas muito mais forte, mais agitado, nervoso, sempre com as penas mais rebeldes eriçadas pelo vento. Vivia de olho nos insectos que passavam ao seu alcance, preocupado com comida, e aproveitava as gotas que pingavam da torneira do jardim para poder beber, disputando o lugar com os outros passarinhos ao redor da poça que se formava no chão. E claro que não entendia as queixas do seu amigo que vivia dentro da varanda.

-Tu tens tudo! - dizia-lhe - Não entendo o teu piar triste. Nunca precisas dormir na chuva, nem ficar preocupado com os gatos que nos querem comer. Não sabes o que é passar fome nem sede, e tens um ninho bem protegido. Queixas-te de quê, afinal ?

-Ah! - suspirava o passarinho de dentro - Eu queria poder voar mais longe, para onde eu quisesse. Brincar no meio das flores e apanhar insectos saborosos. Aqui, não posso. Conheço poucos cantos...

-Mas eu já te vi cantar, quando estás alegre! - argumentou o passarinho de fora.

-Sim! E também sei um canto  para quando estou triste. E outro para quando tenho medo do gato que fica só me rondando, tentando entrar.

-E só sabes esses ? Não sabes o canto de andar perdido ? Nem o canto de chamar os amigos, quando se encontra comida ? Nem o canto para acasalar ?

-Esse de acasalar, eu conheço. Conheço mais ou menos. Somos poucos, não é ? Então as femeas daqui atendem ao meu chamado mesmo que eu cante muito mal. Precisam de mim, e acabam por conformar-se...

-Hummm... Acho que entendo!- piou o passarinho do lado de fora- Mas tens tantas coisas boas, que eu queria ter... 

-Mas a minha vida é desinteressante. Ninguém me dá valor, basta estar aqui. Não vivo melhor se caçar insectos. Nem de um belo canto nupcial eu preciso, já viste ? Basta comer os grãos que nos dão e estar aqui, enfeitando o mundo à força...

-É por isso que te calas, quando os teus donos se aproximam? 

-Claro ! É a minha vingança de passarinho! Apenas me dão o necessário para eu estar aqui. Não me deixam ser livre, nem fazer tudo o que eu poderia fazer. Obrigam-me a ser menos do que eu sou, mas ninguém consegue obrigar-me a colaborar, e é por isso que a vida aqui é tão triste. Quando eles chegam perto, todos nós, passarinhos, nos calamos em protesto!

-Mas olha que a vida aqui fora é terrível. Perigosa e muito injusta. Os mais fortes é que se safam. Os mais fortes comem os mais fracos.Pensa nos gaviões! Quantos de nós já eles mataram com aquelas garras poderosas ? Nunca nos matam a todos para que nos possamos reproduzir, e eles sempre tenham quem caçar e quem comer...

-E achas que aqui dentro é melhor? A nós roubaram-nos tudo. Agora já somos apenas o que sobrou de nós.  Dantes, alegravamos o mundo, agora enfeitamos o espaço de alguém. 

-Isso é verdade! - concedeu o que estava no exterior.

-Já nem seríamos capazes de viver aí fora, junto com vocês, nem fugir dos gaviões ou esconder nossos ovos das cobras que atacam os ninhos. Esquecemos os nossos cantos... E não temos fôlego para voar longas distâncias, nem para brincar no meio das flores do campo nas manhãs de primavera. Até na morte somos diferentes...

-Na morte ? Não entendo. Morte é morte...

-Sim, mas vocês morrem sendo comida para alguém. Nós morremos e somos deitados no lixo, não servimos para nada. Somos um colorido que desapareceu da varanda, não mais.

Sempre era esta a conversa dos dois amigos. E assim foi naquele dia, até que as núvens se juntaram prometendo uma tempestade muito forte, e o passarinho de fora teve de voar procurando abrigo. Depois veio a noite, e o vento do temporal, e um galho foi lançado pela  ventania quebrando os grandes vidros da varanda em mil pedacinhos.

No dia seguinte, o passarinho de fora aproximou-se novamente. Vinha com medo de não encontrar mais o seu amigo. Com toda a certeza ele teria aproveitado e fugido, mesmo sabendo que ia ter de voltar ou morrer.

Mas não. Lá no fundo, dentro da varanda, os seus amigos continuavam pousados nos pequenos poleiros de sempre. Mas estavam de costas viradas para a rua, e desse dia em diante, nunca mais cantaram.

Quem me contou esta história, acrescentou um pouco mais. Disse-me que assim são também os homens.  Alguns, vivem num mundo tão controlado pelos governos, quem já nem entendem mais o mundo, nem seriam capazes de viver noutros lugares. Acabam perdendo a vontade de serem o melhor que poderiam ser - o melhor de si mesmos.  

Apenas não cantam, nos desfiles e paradas organizadas para mostrar que existem, felizes e gordinhos.


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30 de set. de 2017

153 - REGRESSANDO SEMPRE







Às vezes perco-me de mim 
e espalho-me por aí, nos acasos 
de uma deriva sem rotas. 
Aporto onde a mente me leva,
numa embriaguês de instantes,
apenas durante o tempo que ela precisa 
para perder-se de si
e derivar também, como eu,
como se nos fundíssemos
e diluíssemos numa vaga maré
de algum oceano desconhecido, 
banhando outras costas,
muito além do previsível e do necessário 
- lá, onde não chegam as grandes questões
sem a menor importância.
Perambulamos nesse nada, difusos,
até que algo nos chame de volta
e nos traga até à consciência,
unos de novo.
Depois perdemo-nos como um só
nos detalhes do que a vida traz, 
e súbitamente encontro-me comigo
num momento especial
nascido duma cronologia de instantes
mínimos que se somaram até
se concretizarem no meu espanto.

E tudo isso forma uma história,
uma narrativa independente 
daquilo que o destino, afinal, é:
-o eterno espanto 
de um  regresso a nós.

COPYRIGHTHENRIQUEMENDES/2017

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16 de set. de 2017

152 - WILL I EVER ?



Will I ever be able to tell you
where my thoughts went?

Will I ever be able to show you
how to see the colour 
of that fine line 
drawn by our little boat sailing ashore
between the water mirror, the mist
and a time we claimed for us
and wanted to be more?

Will I ever let my fingers 
caress your skin and lips
like if they owned your will and lust,
and make your soul believe and trust
the opportunity dug in centuries 
of hungry soul and feelings echoes?

Did our little boat sail ashore?
Will you ever listen ?
Will your eyes ever shine from desire ?
Will time close upon us 
like hands in a prayer ?


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12 de ago. de 2017

151 - PAGAR O PREÇO







Todos pagamos o preço de ser quem somos. Saibamos disso ou não!

Eu pago o preço de ser quem sou. Tento viver de acordo com minhas escolhas. E tento que estas sejam escolhas informadas, colhendo visões de vários angulos até, finalmente, compôr a minha  e formar uma opinião sobre um determinado assunto. E escolher depois os caminhos que se adequam melhor ao que penso e à opinião que formei.

Fujo da visão de clube, de time. Fujo de ir com a manada, com o bando,  como fujo do prato feito. Prefiro deter-me nos ingredientes, escolher os sabores e os tempos oportunos ao "cozinhado". Em resumo, prefiro pensar e escolher por mim mesmo. Tento não adotar ideias prontas sem me deter sobre elas.


Não fazer isto, para mim, é passar a mão na cabeça à sorte, e entregar-me a ela sem tentar sequer curvá-la a alguma escolha possível. E sempre há uma escolha, evidentemente. Pode é não resultar como queremos, ou a nossa escolha ser errada, mas escolher sempre podemos.

Podemos falar de muitas coisas como o livre arbítrio, que mais não é do que o reconhecimento disto que defendo. Podemos falar de arrogância, mas jamais aceitarei que seja arrogante quem não se presta a seguir o grupo e prefira pensar sozinho. Abomino a "galera" pelo convite à impunidade e à irresponsabilidade. A galera não tem corpo, não se pode responsabilizar, não é ninguém. Dali pode saír tudo e qualquer coisa. 

Admito que possam até, eventualmente, saír dela coisas boas. Há acidentes felizes, excepções que justificam a regra. E a regra, para mim, é que a galera é acéfala, não tem cabeça visível e age no impulso do momento. Mas a galera é comandável, e quem souber comandá-la tem em mãos uma capacidade destrutiva gigantesca. 

Por isso são temíveis as "torcidas organizadas". Por isso existem, para serem temíveis.  Por isso se contratam a peso de ouro os marketeiros políticos, que trabalham para quem pagar mais. E que são temíveis. E que temos de temer, pois são usados para criarem em nós a vontade de seguir com a galera, atrás de um determinado lider que talvez nem escolhessemos se não fosse a influência deles, marqueteiros. Os condutores da galera.

A galera é a turba, a multidão sem rosto. Aquilo que os sábios romanos mais temiam, por lhe conhecerem a violencia e a veia truculenta e incontrolável. 

Mas a galera também é carne para canhão. E devemos pensar nisso tendo em mente que, ao pertencer à galera, podemos estar a ser usados para ir para a primeira linha da batalha. Ser carne para o canhão do inimigo, seja ele qual for. E estar entre os primeiros a tombar.  

Ou então ser da galera pode significar estar entre aqueles que pisoteiam os da linha da frente oposta à nossa, que podem ser nossos amigos e parentes, irmãos, vizinhos. Apenas porque não fazem parte da nossa galera e sim de outra que se pensa diferente e se opõe à nossa.

Recuso a galera. Prefiro pensar sózinho. Escolher com a maior humildade. Mas sem dúvida: sem aceitar que isso seja arrogância ou elitismo. Não é mais do que necessidade. O mundo é feito de galeras com interesses muitas vezes opostos. E deveríamos juntá-las para que se conciliassem, não para que brigassem cada uma por sua vitória.  Todos os governos deveriam conter elementos de todas elas, governando na proporção dos seus votos. 

Onde estiver errado, onde isso possa lesar os outros, é algo que tenho de aceitar como fazendo parte do preço a pagar por ser quem sou e por acreditar nas escolhas pessoais. Informadas!  Não apenas aquelas tomadas depois de se ler apenas os argumentos da galera a que se pertence. É nisto que creio. Assim, simplesmente.

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5 de ago. de 2017

150 - O PERDÃO DOS OUTROS


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Fala-se tanto em perdão! Em como é preciso perdoar para ser perdoado. Em como é preciso perdoar para ficar em paz. Em como é preciso perdoar para se libertar de rancores e angústias que nos afligem. Leio, entendo e concordo. Mas preocupo-me.

Dei três exemplos, nas linhas anteriores, apenas três, e estou certo que são representativos do que é habitual ler-se hoje, um pouco por toda a parte. E nos três há uma espécie de negociação feita de perdoar para obter algo em troca: - Perdoar para obter perdão. Perdoar para atingir a paz. Perdoar para se libertar das angústias... Como se estivessemos usando uma má interpretação da lei do retorno, e buscando de antemão o retorno que pretendemos.

Em nenhum lado vejo defender que se deve perdoar por ser a coisa correta a fazer. A vida, o mundo, os outros,  inevitavelmente nos agridem em um ou otro momento menos feliz. E o perdão é a única coisa que faz sentido e nos permite seguir adiante.

Perdoar, esquecer e recomeçar é a coisa correcta a fazer, simplesmente. E faz parte, ou deveria fazer, dos valores que a educação verdadeira, não o ensino escolar, transmite ou deveria transmitir até que, aprendido o conceito, passe a ser uma escolha interiorizada e se perdoe porque sim. Sem mais motivos.

Perdoar é, sim, um valor civilizacional, um acto educável e educado. E ser-se educado é bom, não careta - como alguns querem que acreditemos, para nos nivelar a todos por baixo. 

Ser-se educado, e nesse contexto perdoar, é o que nos distingue!

Então, que se fale de perdão sim! E não apenas na ótica do que nos traz de lucro, mas também porque sim, porque é o que consideramos certo e educado fazer.

Depois disso, poderemos olhar melhor para um outro aspecto do perdão, de que também pouco se fala: o perdão que devemos a nós mesmos, e que é fundamental. Do tanto que precisamos perdoar-nos por tanto mal que nos fazemos - e aos outros.

29 de jul. de 2017

149 - INDIFERENTE



Talvez um dia
eu me ausente de mim
e deixe que se apague
essa chama que hoje
me corre nas veias
como força vital.

Continuarei sendo eu,
apenas mais distraído
enquanto passo
rumo a algum mistério
do momento que for.

Talvez achem por bem
reservar-me o carinho
devido aos desconhecidos,
que percorrem o mundo
em passos só seus.

Se assim for, espero 
que partilhem meu mantra
tendo na voz o encantamento
das subidas que antecipam
os mirantes.

Se não acharem,
peço para mim aquela indulgência
grata aos que não querem incomodar,
e que me deixem seguir tranquilo
com o vento do instante.

E se não acharem nada,
não será grave.
Talvez nunca me tenham visto.
Ou talvez não estivessem presentes
para me verem, quando passei.


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23 de jul. de 2017

148 - NO ALTO DA MONTANHA DO ADEUS




No alto da montanha do adeus
há um grito rasgado e dolorido
feito do que não se escuta.
E um silêncio que se agiganta e
deixa por dizer o já sabido,
onde o desnecessário esmaga
os instantes do instante,
e o dilui no tempo.

Há uma espécie de noite
que invade  e amordaça
a claridade final dos destinos
que se cumpriram até ao cume.
E os cheiros?  Bem, os cheiros
evocam os caminhos percorridos
que, ali, chegaram ao fim.


No alto da montanha do adeus,
os gestos são estranhos,
um pouco reticentes  e inúteis,
como desculpas sobejamente
conhecidas.


Instala-se um silêncio
com poucos murmúrios, no vento:
-memórias que ainda tentam
uma vez mais repetir-se,
borbulhando lentamente e sem fé,
enquanto se vão fundindo
no caldeirão fuliginoso do tempo
rumo a um passado concluso.


No alto da montanha do adeus
fica o pico ermo e agreste,
inacessível,
onde cabe apenas um só.                                                


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20 de jul. de 2017

147 - TODOS OS AMIGOS









Todos os amigos que não tive
me deixaram no peito, em aberto,
um buraco largo e sombrio,
profano e sem remédio.


Mas todos os que tive foram bons
e procurei dar-lhes o carinho certo
para trazê-los até hoje,
numa valsa que o tempo dançou.


Também foram excelentes
os que imaginei ter, e me levaram
a ser melhor buscando os caminhos
da reciprocidade fértil
-mesmo que desiludida.


E a todos os outros, que o não foram,
devo-lhes o tempo poupado
em reticências.


Que o tempo nos traga
mais a todos,
neste dia e sempre.

4 de mai. de 2017

146 - APOÉTICAS 1





















Quem contava sobre ela era minha avó, aproveitando aquelas  noites longas de fogão de lenha e neve lá fora. E contava como se fosse uma lenda que já vinha lá dos tempos mais antigos, quando princesas e príncipes  faziam parte das histórias, e as lendas nasciam dos pequenos gestos mágicos de quem as contava.

Quando falava dela, Vó sempre dizia como ela era bela, primeiro. E só depois contava sobre como ela deslumbrava a quem a via, por causa daquele jeitinho tão seu, tão frágil, de ser especial. É que ela mostrava-se única, e sobressaía entre todas as outras .”– “E olhem que eram uma multidão que a rodeava!” apontava Vó, não querendo  que isso passasse despercebido.

Mas depois, logo acrescentava que todas eram só um pouquinho menos sublimes que ela, apesar de serem lindas… Claro que, assim, ela ia ganhando aos poucos, cada vez mais, a fama de ser maravilhosa.

E era, sim. Era única e bela, e enchia os olhares de todos com esperanças até então adormecidas. Dava mais cor ao dia de quem nela punha os olhos, e se perdia  de amores. E ninguém resistia a esse seu encanto.


E era só quando chegava a este ponto que Vó contava o resto. Parecia quase uma explicação que nascia assim, das nuances semínimas da sua voz tranquila - voz de Vó, voz de contadora de histórias.

Ela dizia que o destino tinha interferido, e eu acreditava. Devia ser verdade, posto que o destino sempre interferia nas histórias de Vó, e naquela não ia ser diferente.

Por isso, quando Vó continuava a história e contava que já era do destino daquela beldade ser assim, tão bela e tão especial, ninguém estranhava. Menos ainda estranhávamos quando ela acrescentava que, porque isso já estava no seu destino antigo, acabou acontecendo que a bela foi amada como nenhuma outra.

Claro que Vó sempre tentava encontrar algum tipo de conclusão, ou de moral, na história. Por isso comentava o excesso desse amor.
“-Era amor demais!”- dizia. “-Tudo o resto, todos os outros, ficava num segundo plano, um pouco distante e ofuscado pelo brilho desse sentimento entre a bela e o seu par!”

Vó  explicava que, à sua maneira, ele também era muito bonito.  Forte e incisivo,  e rodeava a bela de atenções, defendendo-a dos perigos circundantes. Era mais agressivo que ela, mas discreto e tenaz na sua forma de sempre estar perto.

Dizia que eram inseparáveis, duma forma tão conhecida e tão perfeita, que acabou gerando invejas e ciúmes, como é costume acontecer nas histórias dos grandes amores, quando são por demais conhecidos e perfeitos.

“-E foi por isso...- sentenciava Vó, com um dedo empinado- Foi por isso que o destino interveio. Tamanho amor não podia ficar assim, só em felicidade. É que quase sempre o amor precisa de algumas contrariedades para ser apreciado!”- insistia ela.

E foi por isso que um poderoso feiticeiro que vivia do outro lado do reino, se zangou com os dois e desistiu de tomar para si a bela. Cansado de tentar abraçá-la, mas sempre impedido pelo seu par, o feiticeiro lançou sobre os dois uma maldição terrível, que fazia com que sempre estivessem próximos pelo amor, mas que nunca chegassem realmente a estar juntos.

Quem escutava Vó, principalmente as crianças como eu era então, arregalavam muito os olhos quando ela falava assim de feiticeiros e maldições. Mas até mesmo os adultos se deixavam impressionar, e ficavam de respiração suspensa,  revoltados com tanta maldade. A tensão na velha cozinha crescia até atingir um ponto quase insuportável.

E então Vó, em voz mais doce que nunca, explicava que estava apenas contando mais uma história, e que ninguém precisava sofrer com isso.

Na primeira vez, apesar de ser muito menino ainda, lembro que alguém perguntou: “- Vózinha… Essa história é verdadeira?”. E logo ela respondeu muito lentamente:

-Claro que sim. É a história da rosa e do espinho, que não podem viver um sem o outro, mas que nunca chegam a estar juntos. - E a mão de Vó apontava para as rosas na jarra sobre a mesa da sala, acompanhada por todos os nossos olhares...


copyrightHenriqueMendes2017

2 de abr. de 2017

145 - PERPETUANDO-SE



Um dia decidi levar-te, Poeta,
aos lugares onde se passaram histórias
das quais mal me  lembro.
Clareiras de luz diferente no meio do bosque,
que entretanto  se agigantou em tons de verde pardo
e tapetes espessos de caruma antiga.

Terias apenas de descobrir os gestos
de acariciar as pedras que os Poetas acariciam,
tão comuns às suas mãos tacteantes, sensoriais.
Terias apenas de enfiar-lhes os dedos por debaixo do musgo,
aos poucos, em carícias cada vez mais íntimas ,
até lhes sentires nas palmas das mãos os formatos arredondados ,
e te maravilhares tu também com o calor suave emanando delas,
em secretíssimos prazeres.

Darias voz ao mutismo das sombras das árvores,
que até aí dançavam só para mim.
E mais brilho às lágrimas de resina
com que ocasionalmente as árvores se traíam
por entre a rude casca, em emoções de árvores
dissimulando a sua humanidade.

Quis levar-te e partilhar contigo momentos especiais…
Talvez exibir-me um pouco. Talvez, ufano, quisesse
que me visses terminar de crescer, e fosses  testemunha
de um novo caminho iniciando-se.

Só não esperava ser capaz de surpreender-te novamente.

De ouvir-te as mesmas palavras como látegos,
sibilando até me atingirem a alma
com a fremencia das coisas
num paroxismo particular dos sentidos.

De permanecermos dependentes e paralelos,
depois de tudo,
dentro do acordo que criámos juntos,
ao qual um outro dia daria um fim
do qual hoje desisto.

Sigamos pois juntos, sim! Nas mesmas veias, na mesma verve,
no mesmo eco do Tempo ( Tempo… Tempo… Tempo… )
reverberado entre palavras de rocha viva.


copyrightHenriqueMendes/2017