5 de nov. de 2018

173 - SINGELA




Poderia pintar o mundo
com as cores douradas dos fins de tarde,
e tornar mais suaves as memórias duras
dos temores e dos desprazeres inevitáveis.
Usaria tons fortes de terra, não o preto,
para as sombras, e deixaria brilhos nas águas,
quando as houvesse, com leves toques de laranja
e reflexos de um céu já entrando na noite,
com esboços de mistérios e perguntas.
E haveria de escorrer-me por entre os dedos
um som suave de brisa cálida,
vibrando a nota surda das coisas doces
que, depois de um tanto,chegam ao fim
-mais um murmúrio presente no instante
do que um canto de vento ao longe,
lembrando lonjuras e horizontes.
Claro que não lhe daria as cores cruas
dum meio de tarde, quando os olhos enxergam mais
e nos perdemos nos abismos das distâncias
e em quezílias com o infinito.
E jamais o pintaria pleno de cruezas,
com brilhos agrestes ou exactidões de noite
cintilando metais e cromados,
numa ordem perfeita de recantos cuidados,
artificiais, solenes, com ecos de passos e vozes...
Não...
Eu só poderia pintar o mundo assim,
um quadro onde a vida fosse acontecendo,
que fosse fruto de escolhas e prazeres,
adoçada pelos sentidos mais que pelas vontades,
e onde a realização não dependesse
de frases sempre tão prenhes, sempre tão cheias
de significados e truques, de malícias e vácuos
das coisas impostas pelos outros,
mas sim e apenas da minha palavra mais singela:
liberdade.


COPYRIGHTHENRIQUEMENDES/2018

26 de out. de 2018

172 - SEMPRE ASSIM



De todas as vezes foi assim.
Começou por um perder-me de olhos vagos
ante a proximidade do infinito,
pelo corpo perdendo peso, erguendo-se,
espalhando-se pela luz dourada
do dia risonho.
As vozes do mundo foram surgindo,
soando com trinados de passarinhos,
e o vento cantava baixo
a alegria dos pólens e das flores,
perante a coreografia oscilante
das árvores, tímidas.
Foi então que a paz me inundou por dentro,
me mudou por dentro,
e na minha face nasceu em subtilezas,
num parto de instantes,
algo assim como um sorriso
- cheio de beatitude e de prazer.
Depois fui, aos poucos,
voltando à cadeira, à mesa coberta
com papel escrito, e
aos pensamentos áridos, hesitantes,
já dispersos pelo cheiro de café.
E nisso, cheguei a mim.
Optei por dizer-me “bom dia!”,
à falta de melhor…
Outro dia.


COPYRIGHTHENRIQUEMENDES/2018


.

10 de set. de 2018

171 - MEMORIA ANTIGA




Não estava a pensar em nada de especial, apenas deixava a mente vaguear a seu bel-prazer, sem muita apreciação do que ela fazia. Os pensamentos sucediam-se sem me despertarem grande atenção ou críticas. Modorrava.

E foi assim, inesperadamente, que me deparei com uma recordação antiga. Não a mais antiga das que tenho, mas seguramente das mais antigas.

Da minha rua de hoje,  dum prédio distante em obras,  chegavam-me pela janela os ruídos de marteladas em concreto, coisas caíndo e sendo arrastadas, motores trabalhando. Chegavam-me também os aromas do rio, tão próximo, e de vagas flores em finais de tarde na varanda de alguém.

Talvez tenha sido tudo isso que, somando-se, me transportou para o meu quarto de criança, muito menino ainda, e para um início de dia, cheio de aromas e sons.

Dessa janela de então vinham-me os ruídos muito vagos do dia que começava e os cheiros do jardim,  onde o canteiro das ervilhas-de-cheiro, misturadas com outras flores noturnas, terminava de adocicar a noite.  Também o pessegueiro se erguia alto em promessas de futuro, ostentando pequenas flores rosadas e um cheiro já presente de frutos doces e carnudos.

Um barulho irregular de pedras batendo no cimento do quintal, foi-me despertando e incomodando até me fazer abandonar o meu sono tranquilo de criança feliz e me levar a olhar lá para baixo pela janela.

Ainda fui a tempo de escutar vozes e ver mau pai junto do velho portão de ferro, onde eu cavalgava meus sonhos de faroeste com penas de galinha na cabeça e, na mão,  um pau comprido que se transformava em lança.  Ele antecipara-se a averiguar a causa dos ruídos e acabava de pôr na rua um rapazote que tinha invadido o nosso quintal. Era visível o esforço que meu fazia para se controlar e não perder a cabeça, e minha mãe procurava acalmá-lo o melhor que podia.

Percebi depois o que o que se tinha passado. O rapazote, já bem no fim da adolescência, tinha visto da rua um pequeno cágado que tínhamos no jardim, e que na maior parte da sua calma vida ficava escondido na terra, entre folhas caídas e plantas, mas que nesse dia caminhava sobre o cimento do caminho da entrada, visível e desprotegido.

Claro que algumas vezes o víamos a beber água nos pratos dos vasos, ou meio mergulhado numa poça que meu avô tinha feito exactamente para isso, afundada no chão e para onde escorriam as regas diárias do jardim. Mas na verdade quase nem nos lembrávamos dele. Era apenas uma presença tímida por ali, que vivia a sua vida conosco. Uma curiosidade que eu, menino, tinha sido ensinado a respeitar e que me divertia com seus movimentos  lentos e desajeitados.

Foi essa essa pequena criatura que atraíu  o intruso. Cheio de um ódio incompreensível para mim até hoje, saltou por cima do muro, e virou o pequeno cágado indefeso com a barriga para cima. Depois atirou-lhe pedras, uma após outra, até que o pequeno animal sangrou abundantemente, a sua couraça rachada pelas pedradas  e incapaz de protegê-lo de uma agressão assim.

Hoje entendo que quando cheguei perto, já os meus pais sabiam que ele não iria sobreviver. Mas assim mesmo, lembro-me  que tentaram salvá-lo, e que fizeram uma pequena encenação,  em meu benefício. Lembro-me vagamente de o terem pincelado com mercurocromo, enquanto ele agitava cada vez menos as patinhas. Depois o meu pai enfaixou com gaze a carapaça, tentando mantê-la junta para lhe dar uma hipótese ( mesmo que improvável ) de soldar. Mas como ajudar um cágado, um bicho tão diferente de todos os outros?

Pouco depois tinha morrido, e também em meu benefício foi feita uma pequena cerimónia de adeus em que o enterramos dentro duma caixinha de papelão. Creio que com ele ficou aquela parte ideal, encantada, da infância de cada um de nós, que desagua na realidade mais cruel, e muitas vezes incompreensível, da vida e do mundo dos outros.

Tudo foi feito com muita suavidade, e realmente meus pais conseguiram não alimentar a minha revolta e fazer com que me esquecesse do ocorrido até há pouco dias, tantas décadas depois.

Raramente vou à minha cidade natal, onde tudo isso aconteceu. passou. Mas a casa ainda existe, com o jardinzinho lá ao fundo do quintal, e na próxima vez que por lá passar vou lembrar-me de como foi bom ser menino ali, e recordarei o meu pequeno cágado - morto apenas por estar à vista.

Chamava-se Berloque.


17 de ago. de 2018

170 - CULPEM O VENTO




Quando os ventos não sopram,
não há planícies onde searas ondulem
nem vales onde as árvores se curvem
aos assobios insistentes que as desfolham.

Não se formam redemoinhos fúteis
na poeira dos caminhos, quaisquer que sejam,
nem há folhas mortas que se escondam
pelos cantos mais esconsos dos lugares.

Não há montanhas que os impeçam
ou lhes mudem a trajetória inexistente,
e até as velas dos barcos pendem inúteis
no sem-propósito de uma ilusão.

Mas quando as searas se vergam em ondas
duma agitação elegante e sem ninguém,
em que a palha continua perdendo grão a grão
num prenúncio de  misérias e de falta de pão...

Quando o azul dos céus torna ridículas
as queixas dos olhos, em lágrimas incompreensíveis
que logo secam, mal nascidas de algo que não se vê,
e logo desconexas de um motivo aparente...

Quando assim é, que não se inventem histórias
nem aceitemos como plausíveis ao instante
as explicações  dos que disfarçam a verdade.
Não deixemos travestir aquilo que todos já sabem.

Mesmo quando o seu sopro permanece invisível,
sabemos que foi o vento. Foi o vento...

copyrightHenriqueMendes2018

14 de ago. de 2018

169 - O BIG BROTHER TÁ DE OLHO EM VC


Resultado de imagem para TO DE OLHO EM VC


Crónica do "big brother"

Na escola, enquanto almoçávamos, havia um sujeito que circulava por entre as mesas sempre atento ao que fazíamos e dizíamos. Não tinha nenhuma função, nenhum tipo de poder, nada. Mas sempre aparecia rondando, rondando, e ia interrompendo as conversas  e dizendo pequenas coisas como " bom dia!" ou "boa tarde",  só para garantir que estavam a vê-lo prestar atenção a tudo o que era dito.

Graças a tanta interrupção, todos começaram a calar-se quando ele se aproximava. Ou então falavam de coisas sem grande sentido, como a sopa, ou o tempo. Toda a gente se sentia desagradada por sentir-se assim observada, e logo a turminha mais irreverente lhe chamou "O Sinistro". Foi uma risota geral.

Mas a verdade é que ele teimou e, com isso, rapidamente foi promovido de "Sinistro" para "Agente Secreto", e a turminha riu mais ainda quando a alcunha se agarrou a ele como um carrapato que o acompanhava para todo o lado. Por fim, até quem não era cliente do refeitório só falava dele assim, como "Agente Secreto" que, sendo conhecido de todos, todos passaram a ignorar.

Por fim, o golpe de misericórdia veio de uma forma simples. Alguém se referiu a ele como sendo o "Fiscal da Sopa" e  o título foi tão ridículo, colou tanto nele, que o sujeito nunca mais conseguiu intimidar ninguém.

Entretanto, o que nunca ninguém comentou a respeito do Agente Secreto foi que ele era realmente Sinistro. E que o título de Fiscal da Sopa se mostrou o retrato fiel da sua inutilidade.


11 de jun. de 2018

168 - RENASCIDO






Lancei-me em versos
como se fossem passos
rumo a algum lugar,
exigindo um caminho.

E do caminho nascido assim,
nasci caminheiro, viajante,
lançador de redes que
armadilham palavras.

E das palavras nasci outro.
Um pouco ao lado de mim e
dos meus passos redescobrindo-se,
dos meus caminhos refazendo-se e
das minhas crenças que se renovavam.

Passei a encontrar-me nas surpresas
que os passos contam,
e na busca de profundidade
das frases que me compõem.

Renasci como renascem todos os dias,
em segredos de instantes.




copyrightHenriqueMendes/2018

2 de jun. de 2018

167 - O JANTARZINHO DE ONTEM


Resultado de imagem para BLUE EYES


Ontem fiz o que raramente faço. Cedemos a um petisco que ambos gostamos e, para comê-lo, jantámos, minha mulher e eu, na praça de alimentação dum shopping aqui perto de casa.

Observei que parecia haver mais crianças que o habitual, empurradas nos seus carrinhos por suas dedicadas mamãs e papás, mas acabei conjecturando que talvez fosse apenas porque as crianças hoje são muito mais visíveis. Visíveis, sim !

Os carrinhos são prodígios tecnológicos, com pneus capazes de encarar qualquer rallye pelos matos da capital, que fazem os papás estugarem o passo - talvez na procura inconsciente de se enquadrarem no sucesso daquele look mais desportivo dos seus pimpolhos. E as roupas, tal como os acessórios, no mínimo são condizentes e lindas.

Foi neste contexto que vimos chegar no seu carrinho quase espacial uma criaturinha linda, empurrado apenas pelo papá, até encalhar na mesa a nosso lado. Rápidamente, com meia dúzia de pequenas adequações, o carrinho aumentou de altura permitindo que o garoto ficasse na posição certa para usar a mesa, apesar do cinto de segurança e demais dispositivos destinados a prevenir quedas e fugas.

Pudemos assim ficar maravilhados com as roupinhas que usava com o ar mais natural do mundo: calças jeans azuis, com um cinto a condizer, e um polo vermelho intenso igual ao meu que lhe deixava de fora os bracinhos gorduchos. Reparámos que usava nos pézinhos uns sapatitos casuais de vela, tipo dockside. Por fim, ficamos definitivamente encantados quando olhou para nós e tirou, num gesto singelo de quem está muito acostumado a fazê-lo, os óculos de sol, revelando um olhar intenso, esperto e azulíssimo. Que menino fantástico!

Daí para a frente, fomos saltando de surpresa em surpresa. Mamãe chegou com comida e rápidamente foi colocando ao alcance dele uma caixinha de cartão com batatas fritas. E outra com umas pepitas de frango frito, além de um saquinho com umas tirinhas de cereais fritos, também, e um copo de um refrigerante inespecífico, com um canudinho.

O garoto, comportadíssimo e alheio a tudo o que o rodeava, ia comendo de tudo com uma mão, enquanto mexia com a outra no telefone do papá, onde acontecia um joguinho electrónico qualquer, com uma musiquinha daquelas que só as crianças aguentam. Os pais não trocavam uma palavra entre si, dividindo os interesses entre a criaturinha e a sua própria comida.

Havia algo de vagamente insólito em tudo aquilo, que aos poucos nos ia roubando o sorriso, mas acabámos entendendo quando, mais tarde e já em casa, soubemos pela internet que era Dia da Criança.

Lembro-me que remeti um pensamento em direcção a esse menino, já tão lançado na senda dos homens normais, dando-lhe os parabéns e desejando-lhe uma vida feliz.

30 de mai. de 2018

166 - NO ALTO DA MONTANHA DO ADEUS



No alto da montanha do adeus
há um grito rasgado e dolorido
feito do que não se escuta.
E um silêncio que se agiganta e
deixa por dizer o já sabido,
onde o desnecessário esmaga
os instantes do instante,
e os dilui no tempo.


Há uma espécie de noite
que invade  e amordaça
a claridade final dos destinos
que se cumpriram até ao cume.
E os cheiros?  Bem, os cheiros
evocam os caminhos percorridos
que, ali, chegaram ao fim.

No alto da montanha do adeus,
os gestos são estranhos,
um pouco reticentes  e inúteis,
como desculpas sobejamente
conhecidas.

Instala-se um silêncio
com poucos murmúrios, no vento:
-memórias que ainda tentam
uma vez mais repetir-se,
borbulhando lentamente e sem fé,
enquanto se vão fundindo
no caldeirão fuliginoso do tempo
rumo a um passado concluso.

No alto da montanha do adeus
fica o pico ermo e agreste,
inacessível,
onde cabe apenas um só.    
           




COPYRIGHTHENRIQUEMENDES/2017

17 de mai. de 2018

165 - A CABEÇA E O PREGO




Resultado de imagem para WOOD WITH NAIL


É a cabeça, e não o prego,
quem mantém unidas as partes.

A ferrugem cria um espaço próprio 

na madeira que a desidratação mirrou.

É assim que o prego deixa de ser prego,

com a oxidação do tempo passante.

É assim que se desunem as peças,

nessa união tornada lassa.

E talvez o prego nem tenha culpa,

quando a cabeça lhe sobressai da tábua lisa.

Mas quando o talho surge na topada dolorosa,

num insólito de sangue pelo chão...

vem o esboçar  de uma surpresa 
que não existe realmente

... escolhe-se o silêncio, e despreza-se a culpa

sem reconhecer o parafuso que faltou.

O perdão presume-se implícito
no sofrimento subsequente.


COPYRIGHTHENRIQUEMENDES/2018



9 de mai. de 2018

164 - SONHOS DE RIO









Às vezes sou rio, outras  sou margem.
Ora avanço fluindo constante, imparável e forte,
apreciando todos o detalhes de um mundo
que é, todo ele, o meu caminho,
ora as margens me sufocam numa implicância de detalhes,
com estreitos e fráguas, obstáculos e curvas
atrasando-me todos os  destinos.

Às vezes parece que me cospe, a montanha,
e salto no espaço destemido e inspirado,
rugindo brilhos de arco-íris encantados
e molhando de verde o mundo.
Na minha passagem movo engenhos, crio lagos,
sou alimento e caminho para os que me acompanham.

Outras vezes, afundo-me em terreno macio
e desapareço até de mim, bebido, drenado,
reduzido no meu poder.
Sugam-me a força os dias lentos, e
a secura das planícies monótonas sem outros desafios
que não sejam o da mais elementar sobrevivência.

Entre umas e outras
há um mundo que me deixa passar, quase indiferente,
sem prestar atenção a nenhum outro fado
que não seja o de ser rio, turbilhão de lodos,
solitário e único como todos os rios,
sempre alisando as margens esmagadoras,
rumo a um fim constantemente alterado.

Mas por hoje sou apenas nuvem,
e choro futuros copiosamente.




copyrighthenriquemendes/2018

9 de abr. de 2018

163 - NEM SEMPRE ASSIM


Imagem relacionada


Nem sempre a noite me permite
o descanso singelo do corpo.
Há vezes em que a mente se agiganta
e se impõe, busca o espírito e o além,
e apequena sem dó qualquer outra coisa.
Perco o sono como quem adormece,
repentinamente, numa energia súbita
de quem quer mais que o repouso
e a ausência do momento sentido
num passo a passo doloroso,
de fascínios conhecidos, talvez viciante.
Os sons da  casa estão suspensos,
não há movimento na rua, nem ruídos,
e a solidão torna-se em algo mais,
como um tipo estranho de consciência.
Não me importo com a janela,
distante meia dúzia de passos inúteis.
Sei que as estrelas não estão lá,
que dormirão toda a noite
por detrás das núvens invisíveis
sobre os telhados das casas,
sem brilhos, escondidas da noite
e de mim.
E a lua está ausente do rio,
a água ignorada como se não fosse sua,
e a outra margem perdida no escuro
como se não soubesse a falta que me faz.
Entre mim e ela passam as águas
de um rio que assim não passa,
pois sem margens não há rio,
e se o rio não passa
eu não vou , nem passo,
nem me entrego acompanhando
o seu perpétuo adeus.
Também não passa o tempo, sem adeus,
e a quietude impõe-se, muito maior
que a soma dos silêncios e das ausências.
Por isso apenas fico. Até que o dia chegue
e me apeteça não estar,
e adormeça porque os sentidos desistem,
o mundo se dilui em nada,
e os outros deixam de fazer sentido.


copyrighthenriquemendes/2018


21 de mar. de 2018

162 - O ADEUS À VELHA CASA

Imagem relacionada

A sensação de estranheza foi-se impondo, à medida que percorria a casa conferindo tudo. Ia já ficando claro que falávamos de coisas diferentes, no fim daquela manhã, e realmente não sei se, mesmo no fim, teremos chegado a entender-nos. Mas aqueles momentos foram especiais.

Os homens da empresa de mudanças iam silenciosamente levando as caixas, já fechadas de véspera, e a casa ia ficando vazia. Passavam a escutar-se pequenos ruídos, que  começavam a ganhar novos significados. Ecos nasciam, agora, onde não os havia dantes. As chaves tilintavam sonoramente, um pouco tristes talvez, e sentia que a minha voz tinha um timbre algo diferente, um pouco teatral. Havia nela uma mistura de adeus e de satisfação que vinha de dentro do mais profundo de mim, e que soava dentro da minha cabeça tão claramente como se eu estivesse falando alto com alguém. Por sua vez, a casa respondia-me na sua própria voz, muito serena, tão conhecida, mas que eu nunca tinha escutado com tanta facilidade.

Na cozinha, a minha voz elogiou as bancadas feitas com um granito que eu gostava. E realçou os armários fartos e tão fáceis de usar. Depois lembrou-me de tantos e tantos cafés da manhã felizes, naquele cantinho reservado para a mesa e as cadeiras de todos os dias. Os petiscos da família, os amigos que preferiam ir para lá, em vez da sala.

Fui percebendo que, sempre que a minha voz interior se calava, a voz da casa me respondia lentamente, moderando meu prazer. Talvez as bancadas estivessem um pouco altas demais... -disse ela. E talvez os armários pudessem ser de outro formato qualquer, mais comum. E o cantinho com aquela mesa e cadeiras tinha ficado tão acolhedor, fazia tanto com que apetecesse ficar ali mais um pouco, que às vezes tornava até difícil  sair para ir trabalhar e começar o dia...

A isto a minha voz interior argumentou dizendo que não, e que tinha que ser assim mesmo. “-Nunca saberemos!” respondeu a voz da casa. Percebi que fugia de um acordo que também não aconteceu em nenhum dos outros pontos da casa.

No quarto de hóspedes, a minha voz falou dos amigos, do gosto que tinham em ficar, das comodidades que tinham sido pensadas para eles. E do imenso carinho posto em todos os detalhes. A voz da casa não me contrariou, permanecendo silente.

Finalmente, do grande quarto, saíram as últimas caixas que os homens carregaram no camião, e partiram levando tudo. Com isso, todo o espaço se afundou num silêncio tão sólido e pesado como concreto. Olhei em redor e percorri com os olhos o tanto que ficava, numa promessa de utilidade futura.

A minha voz interior continuava a elogiar detalhes, a recordar momentos ali vividos, as memórias querendo eternizar-se. E novamente a voz da casa me moderava, lembrando incrementos que tinham tido de nascer aos poucos, para melhorar alguma coisa ou  apenas para explorar melhor o potencial de cada detalhe. Novamente não chegámos a um acordo.

Assim sendo, rematei com um argumento que pretendia ser imbatível: “-Esta é a minha história! Dos meus feitos, dos meus amores, e das minhas paixões. Não queiras diminuir a importância disso!”


Houve um momentinho em que o silêncio ficou ainda mais denso. Depois, a voz da casa fez-se ouvir de novo:”-Não estou a diminuir a importância de nada. Mas essa é a minha história, a que tu levas contigo. Eu é que sou a tua história, a que deixas de ti”.



Fiquei sem saber o que dizer, durante algum tempo. Talvez fosse assim.

“-Então achas que, juntas, as nossas histórias são assim uma espécie de romance que houve entre a vontade e o possível ?”-perguntei.
“-Sim, creio que sim! Mas quem sabe destas coisas é a saudade…”

Não soube o que mais dizer. Era a minha hora de saír. Nem me atrevi a ir à capelinha que eu mesmo construíra nas traseiras, e onde havia escrito o meu pedido de sempre: "-Permite, Senhor, que te oremos trabalhando." Já tinha estado lá no dia anterior.

Fui olhando em redor à medida que caminhava para a porta, descendo as escadas interiores. O corrimão de madeira nobre disse-me um adeus especial, que guardo até hoje, fazendo-me uma carícia secreta na palma da mão.

Saí, fechei finalmente a porta e depois consegui não olhar para trás. Poucas vezes na minha vida senti com tanta intensidade que outro futuro estava começando ali.

Tentei filosofar comigo mesmo, enquanto entrava no carro. Avancei para a estrada dizendo a mim próprio que a vida é feita destas coisas, de momentos assim, raros e sem muitas explicações.  E que não era estranho ter havido este diálogo com a casa.
Afinal, eu tinha estado a despedir-me dela. E via agora que ela também estava a despedir-se de mim.





COPYRIGHTHENRIQUEMENDES/2018 foto colhida na net, sem autoria conhecida




12 de fev. de 2018

161 - JAMAIS TE SONHEI MAR

Imagem relacionada

Jamais te sonhei mar,
imensidão, infinitude.
Mas sempre ambicionei
que, em ti, o meu nado
fosse poema e deslumbramento,
carícia total em gesto conhecido,
elegância escolhida sempre.

Sempre quis que as palavras
fossem passos paralelos dando voz
a caminhos convergindo ao sublime.
Por isso nunca me seduziram os murmúrios
nem as mensagens pouco firmes das lágrimas,
em emoções que a dúvida profana.
Por isso nunca olhei menos longe
que a distância confortável da abstração,
onde se difusam as formas e os medos.
Por isso nunca disse em sussurros
o que o peito me ordenava aos gritos.
Por isso tantas vezes calei a alegria
da erva molhada das manhãs,
insisti em não entender céus luminosos
e fiz-me surdo ao dobrados de sinos bucólicos
que me remetiam a outras épocas
- onde o tempo ainda não era um luxo
e, resultando de um lento passado,
preconizava um futuro
onde tudo estava por escrever.




(foto colhida na net sem autoria conhecida)

CopyrightHenriqueMendes/2017
(foto colhida na net sem autoria conhecida )

11 de fev. de 2018

160 - QUERO


Resultado de imagem para dawn





Quero
as madrugadas de que eu gosto
todos os silêncios em que aposto 
e a caneta dançando nos dedos
(uma valsa onde não haja medos)

Quero 
viver toda a poesia dos instantes
e os momentos mais marcantes
o sorriso doce dos meus alentos
(o voar alegre dos pensamentos)

Quero 
que nenhuma noite em si se acabe
que o destino faça tudo o que sabe
que se revele em mais mil histórias
(sejam carícias ou derrotas e vitórias)

Quero
os abraços de todos os amigos
o sorriso fiel dos mais queridos
e uma montanha só para mim
(com sonhos subindo até ao fim)

Quero 
com algo mais que a vontade
um sabor vago de eternidade
e risadas alegres nas manhãs.
(só!)


copyrightHenriqueMendes2017

23 de jan. de 2018

159 - INFINITUDE




Resultado de imagem para sunset


O poema afastou-se, depois
de ter assomado ao longe
numa promessa imensamente
vaga de que ia chegar.


Percebi quando se agarrou
a um detalhe qualquer
e se esfumou em sólidas
concretudes inadiáveis.


Deixou um lamento.
Tinha nascido igual a todos,
um fantástico poema único
ainda por ser de facto.


E deixou um buraco no mundo,
mesmo que as casinhas ao longe
ainda desenhem sorrisos alegres
na face da montanha repetida.


Com ele foi-se o mistério,
o traço insubstancial e fino
com o qual se adequa o mundo
ao bem estar do espírito.


E assim perdeu a voz
aquela chama, apenas nascida,
de algum pormenor singular
levemente ao lado de algo.


E adiou-se o poeta, é claro,
no seu ofício extraordinário
de trazer para o mundo
a poeira encantada das estrelas.



copyrightHenriqueMendes/2017


1 de jan. de 2018

158 - NOVO FIM






Quando o tempo se encolhe,
perde importância o que pouco importa.
Chegam respostas a perguntas esquecidas,
bordejando caminhos sem rumo claro, 
como flores preciosas e acidentais
que definham por falta de atenção
depois de gritarem cores.

Rasgam-se cartas não escritas.
Guarda-se o papel que ninguém usou
e o envelope que permanece vazio, 
onde não se colaram selos nem sonhos, 
nem se escreveram destinos.
Arrumam-se cansaços antigos,
feitos de esperas e vigílias, espessos de
militâncias por valores e crenças maiores.
Levantam-se tapetes tranquilos
em busca de lixos escondidos 
com aparências de normalidade.
Varre-se, prescinde-se, arruma-se,
esvazia-se, define-se um outro esquema
para o porvernir já menos distante.
Abre-se mão de medos, resistências,
lamentos, quezílias as mais diversas
-tudo em nome da leveza para a viagem 
que começa já no próximo instante.
Percebem-se sombras fugazes,
mas quase sempre são esperanças
que nascem furtivas.
Faz-se um espaço vazio depois do ajuste,
como um berço onde embalar medos.
Mas é onde semeamos vontades 
e desfraldamos velas, querentes de vento,
que nos levem pelo mar desconhecido
das travessias necessárias.
O novo ano começa fremente,
e há galopes na manada das horas
disparadas em todas as direções,
já perseguindo metas esquivas.
E por cima de tudo há uma campânula
de silêncio adivinhado onde, aos poucos,
hesitantemente, nos vamos reconhecendo 
nos  pequenos nadas  que somos,
coisas tão nossas e inconfundíveis
como gestos íntimos.
E em toda essa agitação e alegria,
há mais um ano que ainda mal nasceu
mas que já caminha para o seu fim
-como sempre acontece.