5 de nov. de 2018

173 - SINGELA




Poderia pintar o mundo
com as cores douradas dos fins de tarde,
e tornar mais suaves as memórias duras
dos temores e dos desprazeres inevitáveis.
Usaria tons fortes de terra, não o preto,
para as sombras, e deixaria brilhos nas águas,
quando as houvesse, com leves toques de laranja
e reflexos de um céu já entrando na noite,
com esboços de mistérios e perguntas.
E haveria de escorrer-me por entre os dedos
um som suave de brisa cálida,
vibrando a nota surda das coisas doces
que, depois de um tanto,chegam ao fim
-mais um murmúrio presente no instante
do que um canto de vento ao longe,
lembrando lonjuras e horizontes.
Claro que não lhe daria as cores cruas
dum meio de tarde, quando os olhos enxergam mais
e nos perdemos nos abismos das distâncias
e em quezílias com o infinito.
E jamais o pintaria pleno de cruezas,
com brilhos agrestes ou exactidões de noite
cintilando metais e cromados,
numa ordem perfeita de recantos cuidados,
artificiais, solenes, com ecos de passos e vozes...
Não...
Eu só poderia pintar o mundo assim,
um quadro onde a vida fosse acontecendo,
que fosse fruto de escolhas e prazeres,
adoçada pelos sentidos mais que pelas vontades,
e onde a realização não dependesse
de frases sempre tão prenhes, sempre tão cheias
de significados e truques, de malícias e vácuos
das coisas impostas pelos outros,
mas sim e apenas da minha palavra mais singela:
liberdade.


COPYRIGHTHENRIQUEMENDES/2018

2 comentários:

  1. _____ Muito lindo o seu poema! Quem dera pudéssemos pintar o mundo com as cores preferidas ao invés de aceitarmos todas as nuances escuras que nos atordoam...

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  2. Não sei qual é mais bonito. A Imagem, maravilhosa. O poema, nem se fala.Adorei! Adorei muito.

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