10 de jul. de 2020

182 - OS MEUS POEMAS







São como fotos, os meus poemas.
Tentam captar momentos,
todos eles únicos, de um tema 
ou de um sentimento 
que o substitua.


Se fossem perfeitos,
teriam não só a imagem
mas a cor e os cheiros,
o toque e o sabor ,
o sentimento 
e a aspereza quase táctil
da realidade…


Mas são só poemas,
a sua verdade é só a minha,
e a minha arte  
é apenas um passo pequeno,
fugaz e miúdo,
em todo esse chão por percorrer.


São só poemas, e estão
tão longe dessa perfeição
que, escrevê-los,
apenas entorpece a dor 
de não já saber mais
como fazê-los melhores,
e realça o travo amargo 
do limite descoberto.                                          
                                                                                                        
Mas eles são a mancha
amorosamente roxa
no meu braço nu.


A veia  repetidamente furada 
rumo ao fim.
São o meu maior vício!


São um presente que, 
vaidoso que sou,
partilho com os outros
- mas me dou a mim!


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18 de abr. de 2020

181- O GAIVOTA



Orange Generation' | GMB AKASH



Na praceta aqui por detrás de casa, há uma loja de chinês. É uma daquelas lojas que tem de tudo um pouco, de um tamanho já razoavelmente grande, e que está aberta desde as nove da manhã até às nove da noite todos os dias do ano.
Há uns anos atrás, apareceu-nos o dono, que já conhecíamos, com o cabelo pintado de cor de laranja. Quase não fala português, mas foi capaz de entender quando a minha mulher, ainda embasbacada da surpresa, resolveu elogiar: “-Muito bonito!”. Acenou vagamente com a cabeça, mas não disse nada. Esse foi o momento de ele ficar admirado. E da minha mulher ganhar um fã.
Daí em diante, passou a cumprimentar-nos com um gritinho estridente, sempre que nos vê na rua. Parecia um grito de gaivota, e demorámos algum tempo a perceber que a gaivota era ele, com olhos muito abertos, sorriso contente e cabelo cor de laranja. Um personagem e tanto. Claro que o batizámos imediatamente, e daí em diante ficou sendo o “Gaivota Maluca”.
Mas o tempo passou, o cabelo do rapaz foi escurecendo, mantiveram-se o sorriso e a gentileza para connosco, e resolvemos aligeirar o nome para “Gaivota”. Apenas.
Da janela da cozinha, vemos uma das entradas da loja do Gaivota. E a toda a hora o Gaivota entra e sai, guiando um pequeno furgão, sempre atarefadíssimo, trabalhando, trabalhando. Num pequeno pátio ali do lado, brincam os seus filhos, que entram e saem da loja junto com os clientes que são muitos.
Na praceta, de manhã, antes da loja abrir, sempre há gente esperando. Uns dentro dos carros, outros simplesmente em pé, conversando ou não. Da loja dos Correios, depois de receberem as suas pensões, chegam muitos idosos. A loja do Gaivota, mais que um comércio é já um ponto de encontro. Uma instituição, diria eu.
Nesta hora de vírus chineses, receei que as pessoas destratassem o Gaivota, mas não parece ser o caso. Não me parece que o vejam como diferente, ou que façam qualquer associação aos vírus ou que, mesmo remotamente, o culpabilizem seja pelo que for. O tempo o dirá, mas creio que no imprevisível inconsciente coletivo, o Gaivota faz parte do nosso rebanho. Tem os nossos medos, tem filhos como nós, também paga impostos, trabalha como um condenado, e é tão vítima como todos os outros desta época de quarentenas e de limitações. Parece-me inocente quem tem uma loja cheia de mercadoria que não pode vender por ser obrigado a mantê-la fechada. Tal como o me parecem inocentes todos aqueles a quem está sendo impossível ganhar o seu pão com o seu trabalho.
E, assim parecendo, perco-me em reflexões a esse respeito. Nessa história toda, da disputa crónica pelo poderio, pelo armamento, nessa tentativa eterna, diária, de impor ideologias mais do que fracassadas, condenadas e condenáveis, não me parece que haja inimigos nos outros povos. Não me parece que haja problemas de raça, de crença, de vontades. Claramente parece haver problemas sérios, sim, mas nos governos que deixaram de nos representar, para se representarem a si mesmos. Governos que não hesitam em nos usar como massa de manobra, carne para canhão se lhes aprouver a guerra. Que se defendem a eles mesmos e que se eternizam, que nos esmagam as vontades e as esperanças, que não nos consultam mais.  Que nos enredam em leis que já deixamos de entender, para protegerem corruptos, corruptores, servos de ideais escusos e com carteiras bem recheadas.
Veremos o que os novos tempos nos trazem. Se retomaremos a normalidade, ou se vão tentar ensinar-nos a odiar o Gaivota.  Veremos se lá, noutro lado qualquer, tentarão  ensinar a odiar gente comum, como nós, seja por termos cabelo cor de laranja, por sermos de outra raça, termos outras crenças, sermos bonitos, feios, ou assim-assim...


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31 de mar. de 2020

180 - DIZEM POR AÍ


A Ilha de Páscoa e seus moais - Travelness






Dizem-me que esta é a oportunidade
que o mundo precisava para reflexão.
Que os passarinhos agora vêm pousar nas janelas
agradecidos pelo silêncio, e os peixes voltaram
a nadar em águas que agora ficaram transparentes
por falta de poluição constante.
De súbito, a pandemia parece ser a resposta
para todos os males reinantes, como se vivêssemos
o mundo, sempre, em irresponsabilidade total.
Claro que as coisas mudaram.
Mas receio que na memória das gentes
vá restar algo menos doce e meigo,
não o altruísmo dos que ajudam nem
os exemplos de retidão e vontade de bem servir de tantos.
Receio que fique o horror das mortes de inocentes,
e dos mais idosos, a quem devíamos ser gratos
pela vida que temos, e que herdámos deles.
Receio o aproveitamento que algumas igrejas farão do caos,
sem dizerem que a melhor oração é o trabalho. Receio
a manipulação dos políticos, protegidos por imprensas pagas,
que desviarão a nossa atenção de algo que é óbvio: eles falharam. 
Não estávamos preparados.
Por causa da corrupção não havia hospitais funcionando bem,
nem remédios nem equipamentos de proteção.
E a missão deles era fazer com que houvesse tudo isso,
sem ideologias nem compadrios, nem vaidades,
PORQUE FOI ISSO QUE NÓS PAGAMOS.
Muitos morrerão ainda, quem sabe quais?
Tenho medo da fome que virá depois dos confinamentos,
Medo daqueles que por falta de droga ficarão de cabeça perdida,
medo do desemprego dos jovens que nunca precisaram
de saber sobreviver, que nunca passaram pelos horrores da guerra
nem nunca dependeram apenas de si mesmos.
Receio o domínio dos mais fortes sobre os outros,
receio as repetições de vírus convenientes e seletivos.
Receio que, afinal, se houver nessa pandemia alguma lição,
que ela se perca, esquecida pelas memórias de violência,
de pilhagens e de assaltos, do verniz estalando e
da verdadeira face da besta surgindo, sem que haja desculpas.
Talvez daqui por diante as pessoas se conheçam melhor,
e quero acreditar que isso é possível, sim.
Mas receio que se conheçam no seu pior,
e que não aprendam nada.

 31/03/2020


2 de jan. de 2020

179 - DETALHES.1

Resultado de imagem para CHUVA


Escolho
olhar para cima e ver a chuva.
Ver os pingos nascidos do nada
crescerem a caminho dos meus olhos
até me atingirem a pele
numa mistura tridimensional
de imagem insólita,
som pressentido
e toque disseminado, frio.
Escolho 
não lhe fugir porque molha,
não procurar abrigo,
não evadir a carícia
a que nunca me dou,
não temer consequências
nem incómodos.
Escolho
só retomar o caminho depois,
saturados os sentidos
e inebriada a alma
dos prazeres simples
do instante esculpido
para todo um sempre
feito dos amanhãs que houver.
Escolho
rever-me só depois,
de dentro, ascendente e leve,
sentindo as forças voltarem
e retomarem-me a vontade,
a poesia voltando a tomar posse,
as mãos reiniciando velhos gestos
e o espírito abrindo-se
ao caminho errático
das outras formas de ver o mundo.
Escolho
os anos sem idade
e as horas como sorrisos alegres
entre pensamentos.
Escolho-me,
como se pudesse não ser assim.