21 de mar. de 2018

162 - O ADEUS À VELHA CASA

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A sensação de estranheza foi-se impondo, à medida que percorria a casa conferindo tudo. Ia já ficando claro que falávamos de coisas diferentes, no fim daquela manhã, e realmente não sei se, mesmo no fim, teremos chegado a entender-nos. Mas aqueles momentos foram especiais.

Os homens da empresa de mudanças iam silenciosamente levando as caixas, já fechadas de véspera, e a casa ia ficando vazia. Passavam a escutar-se pequenos ruídos, que  começavam a ganhar novos significados. Ecos nasciam, agora, onde não os havia dantes. As chaves tilintavam sonoramente, um pouco tristes talvez, e sentia que a minha voz tinha um timbre algo diferente, um pouco teatral. Havia nela uma mistura de adeus e de satisfação que vinha de dentro do mais profundo de mim, e que soava dentro da minha cabeça tão claramente como se eu estivesse falando alto com alguém. Por sua vez, a casa respondia-me na sua própria voz, muito serena, tão conhecida, mas que eu nunca tinha escutado com tanta facilidade.

Na cozinha, a minha voz elogiou as bancadas feitas com um granito que eu gostava. E realçou os armários fartos e tão fáceis de usar. Depois lembrou-me de tantos e tantos cafés da manhã felizes, naquele cantinho reservado para a mesa e as cadeiras de todos os dias. Os petiscos da família, os amigos que preferiam ir para lá, em vez da sala.

Fui percebendo que, sempre que a minha voz interior se calava, a voz da casa me respondia lentamente, moderando meu prazer. Talvez as bancadas estivessem um pouco altas demais... -disse ela. E talvez os armários pudessem ser de outro formato qualquer, mais comum. E o cantinho com aquela mesa e cadeiras tinha ficado tão acolhedor, fazia tanto com que apetecesse ficar ali mais um pouco, que às vezes tornava até difícil  sair para ir trabalhar e começar o dia...

A isto a minha voz interior argumentou dizendo que não, e que tinha que ser assim mesmo. “-Nunca saberemos!” respondeu a voz da casa. Percebi que fugia de um acordo que também não aconteceu em nenhum dos outros pontos da casa.

No quarto de hóspedes, a minha voz falou dos amigos, do gosto que tinham em ficar, das comodidades que tinham sido pensadas para eles. E do imenso carinho posto em todos os detalhes. A voz da casa não me contrariou, permanecendo silente.

Finalmente, do grande quarto, saíram as últimas caixas que os homens carregaram no camião, e partiram levando tudo. Com isso, todo o espaço se afundou num silêncio tão sólido e pesado como concreto. Olhei em redor e percorri com os olhos o tanto que ficava, numa promessa de utilidade futura.

A minha voz interior continuava a elogiar detalhes, a recordar momentos ali vividos, as memórias querendo eternizar-se. E novamente a voz da casa me moderava, lembrando incrementos que tinham tido de nascer aos poucos, para melhorar alguma coisa ou  apenas para explorar melhor o potencial de cada detalhe. Novamente não chegámos a um acordo.

Assim sendo, rematei com um argumento que pretendia ser imbatível: “-Esta é a minha história! Dos meus feitos, dos meus amores, e das minhas paixões. Não queiras diminuir a importância disso!”


Houve um momentinho em que o silêncio ficou ainda mais denso. Depois, a voz da casa fez-se ouvir de novo:”-Não estou a diminuir a importância de nada. Mas essa é a minha história, a que tu levas contigo. Eu é que sou a tua história, a que deixas de ti”.



Fiquei sem saber o que dizer, durante algum tempo. Talvez fosse assim.

“-Então achas que, juntas, as nossas histórias são assim uma espécie de romance que houve entre a vontade e o possível ?”-perguntei.
“-Sim, creio que sim! Mas quem sabe destas coisas é a saudade…”

Não soube o que mais dizer. Era a minha hora de saír. Nem me atrevi a ir à capelinha que eu mesmo construíra nas traseiras, e onde havia escrito o meu pedido de sempre: "-Permite, Senhor, que te oremos trabalhando." Já tinha estado lá no dia anterior.

Fui olhando em redor à medida que caminhava para a porta, descendo as escadas interiores. O corrimão de madeira nobre disse-me um adeus especial, que guardo até hoje, fazendo-me uma carícia secreta na palma da mão.

Saí, fechei finalmente a porta e depois consegui não olhar para trás. Poucas vezes na minha vida senti com tanta intensidade que outro futuro estava começando ali.

Tentei filosofar comigo mesmo, enquanto entrava no carro. Avancei para a estrada dizendo a mim próprio que a vida é feita destas coisas, de momentos assim, raros e sem muitas explicações.  E que não era estranho ter havido este diálogo com a casa.
Afinal, eu tinha estado a despedir-me dela. E via agora que ela também estava a despedir-se de mim.





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