8 de mai. de 2012

44 - TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE 3


Qualquer caminho é muito mais do que meramente um percurso, que se retoma após cada nova parada. Para ele, o Caminho sempre tinha sido muito mais do que isso, e os seus passos tinham-no percorrido com uma satisfação renovada pela sucessão dos dias, sempre diferentes.

Os lugares revelavam-se únicos e vibrantes de detalhes, cada um deles um hino soando em louvor a um espaço e a um tempo que ali convergiam, perante os seus olhos, resultantes de  uma infinidade de combinações possíveis.

Os outros caminhantes, quer partilhassem o seu rumo e permanecessem  ao seu  lado por algum tempo, quer cruzassem consigo rumando a outros destinos, continham em si mesmos o fascínio inapelável do futuro deslindando-se a cada passo. Por isso eram raros os conhecidos que encontrava. Quase todos caminhavam perseguindo objetivos e detalhes que variavam a todo o momento, o que tornava confusas e erráticas as suas rotas.

Habituara-se a vê-los ir e vir, os seus rostos mudando sempre.  Eram cada vez menos os que pediam para partilhar a sua fogueira, nas longas noites frias.  E era cada vez maior o numero de pontos luminosos espalhados pela noite, revelando outros pequenos acampamentos espalhados em todas as direções. Isolados.

Acabara perdendo a conta do tempo. Caminhara por muitos anos, sempre animado por esse amor ao Caminho, apreciando-o em todos os detalhes. Enaltecera-lhe a beleza, ajudara os outros quando fora necessário, escutara-lhes as histórias, e tentara sempre guiar-lhes os passos quando os sentira perdidos. Tornara-se aos poucos numa presença habitual, passando sempre, caminhando sempre, carregando consigo notícias de  lugares distantes e espalhando costumes e tradições.

Quando um dia sentiu vontade de parar, não imaginou que fosse cansaço. Apenas estranhou que os lugares, sempre tão especiais e únicos, começassem a parecer-se uns com os outros. Como se o mundo se estivesse copiando a si mesmo, e as flautas dos pastores tocassem, bucólicas, uma mesma melodia em todas as pastagens de todas as montanhas.

Quando realmente parou, construiu o seu abrigo e se rodeou dos seus pequenos confortos, descobriu que essa parada  não era mais do que  apenas um outro passo no seu caminho. Uma outra etapa.

Rodeara-se de pequenos objetos. Coisas sem importância que trouxera de tantos lugares diferentes, e que evocavam momentos especiais, como sumários de emoções. E essas emoções despertavam saudades e novos anseios, entre eles o de partir novamente.

Foi então que percebeu que esse anseio da partida era também apenas um outro passo no seu caminho, tornado fácil por já ter um abrigo seu, de onde partir, e para onde voltar. E assim partiu e voltou muitas vezes, escrevendo em passos a sua história.

Sabia como as marcas dos seus passos eram efêmeras, na poeira dos caminhos.  Era apenas mais um passante deixando pegadas logo pisadas por outros, que lhes modificavam as formas.  E o número dos outros passantes não parava de aumentar, em idas e vindas por toda a parte, reduzindo tudo a traços amorfos, de leitura impossível.

Só nas pequenas cavernas, onde se refugiara das chuvas em vezes anteriores, de vez em quando encontrava vestígios de si mesmo, e da sua passagem. Pequenos benefícios que introduzira nesses lugares. Um chão que alisara, para melhor poder dormir. Uma rocha que escavara para acolher o fio de água que nascia da parede, transformando-o em fonte. Ou pedras, que empilhara na entrada para impedir o vento.

Eram coisas suas,  nascidas do seu trabalho, das suas necessidades e do seu engenho, que muitos tinham aproveitado depois, usando-as e, muitas vezes, acrescentando-lhes alguma coisa, fosse boa ou não.

Mas sempre havia algo que fora acrescentado, e muitas vezes percebia que o lugar fora arrumado e limpo antes de ser abandonado por quem o usara, deixando-o pronto para acolher a quem o encontrasse.  O seu exemplo frutificara. Ás vezes ainda encontrava a vassoura, improvisada duma galhada qualquer. Outras vezes, um pouco de lenha seca, empilhada num canto, numa oferenda anônima a quem chegasse depois . Ou um pequeno fogão de barro amassado, onde se tornava fácil cozinhar algum alimento para recuperar  as forças antes de prosseguir.

Atento, foi notando cada vez mais a existência deste tipo de detalhes, e percebeu que havia uma esperança. Que havia outros viandantes que não se limitavam a passar. Que escreviam as suas histórias em sutilezas que não poderiam ser apagadas pelos outros. E que muitos deles eram jovens, mas já empenhados na procura dos seus próprios caminhos, e firmes nos seus passos.

Essa convicção permeava a sua vida, e esteve presente de todas as vezes que decidiu partir. Sentava-se num pequeno banco, junto á porta já aberta, e calçava a suas sandálias de sola grossa, amarrando-as ás pernas com todo o cuidado enquanto olhava lá para fora, já sentindo o fascínio do caminho que se abria à sua frente.

Depois punha a capa pelos ombros,  o alforge a tiracolo, o cantil do outro lado, e logo que pegava no seu cajado de viandante, os seus passos iniciavam-se com fluidez, como se a normalidade se reinstituísse, e retomava o caminho sem nunca olhar para trás, ou sequer fechar a porta.

Agora, enquanto olhava esses objetos que eram seus companheiros havia tantos anos, decidira que não partiria mais. E percebia que ficar era apenas mais um outro passo ainda, no seu Caminho.

Olhou a mesa, a pena, o papel liso como uma estrada, à sua frente.

Ficou.


TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE III
Março 2009

Um comentário:

  1. A figura simbólica do caminhante, tão cara a tantos literatos, sofre aqui uma leitura não daquilo que seus olhos vêem, mas uma leitura "por dentro", interna, reflexiva. Nele, percebo o arquétipo do Zaratustra, do arcano 9, o Eremita. Mas, singular eremita pôsto que caminhante. E singular caminhante visto que se fizera apegado aos objetos que se tornaram companheiros. E que buscou o sedentarismo de uma cadeira e fez da folha de papel diante de si o seu caminho maior a percorrer. Todas essas sua crònicas, meu amigo Henrique, são de uma profundidade e beleza que, muito além do deleite literário, nos convidam à reflexão mais profícua, transcendental. Pena que uma tal riqueza chegue apenas a uns poucos pares de olhos… Magistral!

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