8 de mai. de 2012

43 - TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE 2


A mão reencontrou a forma que ela mesma impusera à madeira, muito tempo antes.Com isso, houve uma espécie de estremecimento no mundo, ao redor.  Uma vibração de ajuste.  Um regresso à normalidade. 

A mão segurou o cabo do cajado com fluidez. Percorreu-o  em carícias de dedos até ao castão de prata, onde se abrigava o cristal puro. E estes sentiram a textura, e tatearam os nós, tão conhecidos, num gesto antigo, que sobrepunha doçura á experimentação.

Foi então que percebeu o corpo inclinando-se para a frente, num discreto início de movimento, que logo reprimiu. Os primeiros passos, se os desse, como os pararia ? 

Olhou as sandálias de sola grossa, no chão. Por um momento, pareceu-lhe  que voltava a ouvir-lhes a voz  crepitada de quando caminhavam  esmagando pequenas pedras e torrões de terra pelos silêncios  ermos dos caminhos, enquanto iam absorvendo as  histórias espantosas de  tantos lugares.

Mas as velhas sandálias apenas descansavam na sombra da capa de lã e do chapéu, ambos pendurados na parede, junto á grossa porta de madeira, ao lado do alforge de couro escuro, e do cantil.

Todos esses objetos familiares estavam há muito tempo na eminência daquele instante por chegar, cuja aproximação agora se dava num crescendo de tensão quase palpável.

E todos, pela primeira vez, pareciam perceber que isso era partir. Não mais como das outras vezes, quando apenas iam, sabendo que tinham ali o seu ponto de regresso.

Por isso, tudo ao seu redor foi ficando especial, quase mágico, e uma luz, que parecia vinda do interior das coisas, brilhou suave, e acrescentou solenidade e honra ao momento.

Por cima de todas as casas, uma leve fumaça ascendia,  aromática, enchendo o vale com sutis aromas de abastança.

Espalhou-a o vento, que não trouxe rumores de passos.

Permaneceram  silenciosos  os  cães,  sem  ladrar  limites.

O dia demorou a amanhecer, envergonhado.

Talvez de ser apenas outro dia.                     


TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE 2
( Março 2009)

Um comentário:

  1. Como a maior parte de seu textos, Henrique, este também mereceu releituras. E isso se deu, não apenas pela riqueza intrínseca do vocabulários e das imagens, mas também pela natureza da narrativa, da simultaneidade de descrição e comentário. Mister se faz assimilar uma e outro. Daí o porque deste seu estilo de crónicas(!) ser, para mim, tão maravilhosamente pessoal. Este environement de campagne, atemporal e despojado, a figura humana e seus objetos também atemporais, assume aqui as feições clássicas da narrativa de sagas, de lendas, da narrativa quase bíblica. E, ipso facto, o desenlace da observação se reveste de uma aura mística, quase sobrenatural, própria da literatura fantástica. Mas o Henrique, grande cronista, não esquece a sua inimitável assinatura: "O dia demorou a amanhecer, envergonhado. Talvez de ser apenas outro dia." Não é mais o autor, é texto que se completa por si mesmo. Excelente!!

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