24 de jun. de 2011

12 - NÃO É MELANCOLIA








Não é melancolia.
Nenhum tipo de vaga tristeza
sem foco ou sentido objetivo de ser.

Não são saudades,
nem fugas da memória em rumo
a algo deixado lá para trás,
e agora envolto numa neblina de distância
que lhe retira a frescura da vida em primeira mão,
e o sabor - doutra forma inalcançável – da surpresa
sabiamente revelada pelo destino, passo a passo.

Não é falta sentida,
além das boas memórias enraizadas no meu cerne,
carícias assimiladas, hoje na génese das minhas escolhas.

Não é profundidade almejada
para os gestos simples, deixados simples,
que me revelam antes de serem contidos, sofreados,
em atenção, tantas vezes dolorida, aos outros.

Não é nada disso.
Mas talvez seja um pouco disso tudo,
um restinho do tanto que já disse,

do tanto que já me disse,
mas que sobrou, que não foi expresso em palavras,
e que se acabou ficando por um rápido etcetera.
Hoje decido que seja etletera.





(foto de Henrique Mendes)

13 de jun. de 2011

11 - SERIAM PALAVRAS


Seriam palavras, se as houvesse.
Se pudessem dizer mais, daquilo que importa.
Se com elas se construíssem ninhos para onde voássemos,
quais pássaros livres mergulhando ás alturas,
falhos de lógica, em quedas só nossas,  ascencionais,
seguindo os caminhos secretos do instinto
e as vozes antigas no sangue grosso,
quando gritasse exigências.

Seriam passos, se ainda os houvesse por dar.
Ou se fossem ainda necessários
para chegarmos onde já estamos sempre.
Se houvessem ainda caminhos a percorrer,
e se, percorrendo-os, diminuíssemos duma vez
as distâncias e os medos que nos separam de nós.
Seriam passos–ferramenta escavando um futuro
numa falésia rochosa feita de outras dificuldades.
Mas são apenas os dias escoando-se desperdiçados,
deixando atrás de si uma fome especial feita de desencontros,
de mal entendidos que talvez temamos bem-entender,
e, neles, as palavras revelando-se insuficientes,  soando ocas,
e os passos tornando-se caminhos sem rumos definidos,
desenhando pegadas em  mapas fortuitos, num ladear de destinos.
Por isso ás vezes me desloco para  um outro mundo, desenquadrado,
sem regras nem tempo medido, nem assinado embaixo,
onde procuro que não haja esperança excessiva  nem mel a conta-gotas.
Um meio que seja um outro meio , talvez num tempo diferente,
onde quero as palavras como fortes mas singelas carícias,

e onde os gestos ecoem os adejos das  asas  brancas de criatura aladas,

ajoelhadas perante a  missão primordial de serem felizes.


Um meio e um tempo “entre” , onde subsisto numa história  crua,
e onde  me escrevo em prazeres onânicos e simples
enquanto os momentos  se revelam em  concordâncias fantásticas,
onde a verdade, como uma pimenta, se acrescente á ficção e ao mundo.
Em redor sobram as cascas das horas  terçadas como armas,
e  as identidades desperdiçadas perambulando pelo Caminho.
Como um Fado.







10 - FIM DE DIA



Desço os degraus da rotina.
Vou pousando a caneta.
A brisa trazendo as regras do mundo.
Sopros difusos e entardecidos.
Vozes indistintas ainda vagas.
Coisas que capto sem querer.
O fim da tarde impondo-se.
Sons repletos dos outros.
Vontades além das minhas.
Gritos que não os meus.
Caminhos abrindo-se nos sons.
Pensamentos fugindo á vontade.
Pressa na luz que foge.
Tensões feitas de horários.
Aves mais silenciosas e mais raras.
Flores de outros tons.
A vida mudando de cor.
Poetas adiados.
Escritos incompletos.
Objetos que demoro a reconhecer.
A outra vida já chegando.
Os ritmos já mudando.
Ajustes sendo feitos.
Idéias a guardar em vão.
Perdida a centelha motriz.
Assumida a hora real.
A mudança que castiga.
O fim tangível do caminho.
O retorno inabalável á esperança.
O carinho da vida a dois.
Campos rasos e chãos.
Espaços abertos para a outra metade.
A mesa farta que me aguarda.
Mas, amanhã, eu volto!

9 - O MAR E TU ( Dulce Pontes + Andreas Bocelli )




 Composição : Dulce Pontes / E. Gragnaniello

Sentir em nós
Sentir em nós
Uma razão
Para não ficarmos sós
E nesse abraço forte
Sentir o mar,
Na nossa voz,
Chorar como quem sonha
Sempre navegar
Nas velas rubras deste amor
Ao longe a barca louca perde o norte.


Ammore mio
Si nun ce stess'o mare e tu
Nun ce stesse manch'io
Ammore mio
L'ammore esiste quanno nuje
Stamme vicino a Dio
Ammore


No teu olhar
Um espelho de água
A vida a navegar
Por entre o sonho e a mágoa
Sem um adeus sequer.
E mansamente,
Talvez no mar,
Eu feita espuma encontre o sol do teu olhar,
Voga ao de leve, meu amor
Ao longe a barca nua a todo o pano.


Ammore mio
Se nun ce stess'o mare e tu
Nun ce stesse manch'io
Ammore mio
L'amore esiste quanno nuje
Stamme vicino a Dio
Ammore
Ammore mio
Si nun ce stess'o mare e tu
Nun ce stesse manch'io
Ammo re mio
L'amore esiste quanno nuje
Stammo vicino a Dio
Ammore

12 de jun. de 2011

8 - TÚNEL




Talvez tenha construído demasiado longo
esse túnel feito de palavras.
Esmeradas, escolhidas, polidas como jóias.
Únicas todas elas, raras e tão especiais.
Mas um túnel demasiado longo,
sem claridade na saída. Nada.
Nada, a não ser o brilho escuro, familiar,
vindo do próprio túnel, onânico, solitário,
de mais palavras desabrochando momentos,
feições novas de velhos significados revistos,
velhas roupagens puídas cerzidas mais uma vez.
Apenas mais palavras.
Uma espécie de infinito tornado cúmplice,
noite,  penumbra escondendo os outros,
suas dores, mágoas, medos, monstros,
e escondendo-me de quase todos eles.
Tudo para dar-me o tempo de mais um poema,
jamais singular, e  jamais definitivo,
como tanto desejaria que fosse.
Jamais um poema revelador, feito de luz,
maior que apenas um monólogo incontido,
mostrando-se além da prudência
que o tempo trouxe.
E,  inevitavelmente,
jamais algo que me colocasse
além das simples palavras.
E de monólogos no meio de um túnel.

Foto: Ian Briton/Freephoto.com

11 de jun. de 2011

7 - AETERNUM




O dia virá em que a linha, como uma risada interrompida,
ficará inconclusa. Por escrever.
Mas  nesse dia nada ficará diferente.
Não mudará o espaço,  que continuará vago
-como sempre o estará  o espaço dos poetas, disponível-
e que, apesar disso,  continuará a estar cheio,
porque jamais poderia estar doutra forma
aquilo que a própria ausência enche  e enuncia.


E o que  sobrar  na memória dos outros,
capaz de merecer uma citação concreta, reproduzível,
uma frase lapidar que ilustre bem uma situação,
ou que claramente aponte um norte,
será tão importante quanto esse espaço de ser  imutável,
que nada jamais  alterou, a que nada dará fim
e que nenhum fim terminará.


E se nada chegar a esse ponto,
de mudar aos olhos dos outros;
se houver apenas uma vaga sensação de falta,
de coisa indefinível  que o quotidiano crú apagará,
haverá  ainda a memória daqueles que um dia,
pelo breve  tempo encantado de um poema,
voaram mais alto e viram o mundo com outros olhos
-e souberam que ser Poeta é ter uma outra voz,
e sentir sob uma outra forma de consciência.
Que é imortal, mesmo no silêncio.


8 de jun. de 2011

6 - GRITO ( clip )



Poema :  H. Mendes / Clip : L. Aguilar / Musica : Net, autoria desconhecida

5 - GRITO ( poema de 1986 )


O Grito.jpg ( Quadro: O grito, de Munch )

Às vezes, apetece-me gritar ao espaço
um grito livre de todas as peias,
distante de todos os medos
e vazio de todas as angústias.
Um grito terrível, animal
e sem significado.
Um daqueles gritos
em que a alma se rasga ...
Um grito selvagem e livre
como só um grito pode ser...
E no silêncio seguinte,
reconstruir as manhãs de sol
e os cheiros das coisas...
Tornar obrigatórios
os sabores pálidos das frutas raras,
e os perfumes das flores nocturnas...
E descobrir em todos os dias seguintes
um amanhã diferente do meu amanhã de sempre...

( como se fosse o último grito,
 o último amanhã,
 ou a última vez ! )


.

7 de jun. de 2011

4 - FALUAS DO TEJO ( Madredeus )


Faluas, (a)
Vaga lembrança
Qu'eu de criança
Guardei para mim
Se as vejo ainda
Às vezes no Tejo
Revivo a alegria
Do tempo em que via no rio a passar
Faluas do Tejo
Que eu via a brincar
E agora não vejo
No rio a passar
Faluas vadias
Que andavam ali
Em tardes perdidas
Qu'eu nunca esqueci
E era tanta à beleza
Que essas velas ao sol vinham criar
Belo quadro da infância
Que ainda não se apagou
E eu tenho a certeza
Que as Faluas do Tejo hão-de voltar
Outra vez a Lisboa

(a) Falua é um tipo de barco típico da foz do rio tejo, práticamente desaparecido.

4 de jun. de 2011

3 - UM PRESENTE FEITO DE TEMPO




Dirigi-me á antiga clínica, perguntei por ela, e soube que sim: ainda era viva a freira que ajudara ao meu nascimento, muitos anos antes.

Chamaram-na e, nos poucos minutos que demorou a chegar, imaginei-a uma criatura alta e roliça, de bata branca e braços fortes,  nos quais se alojaram num primeiro instante muitas das crianças da cidade.

Mas quem chegou foi uma velhinha pequena, de olhos muito escuros e brilhantes, de sorriso travesso e passada firme, que me identificou imediatamente, quando lhe contei quem eu era.  

Logo me perguntou pela minha família, avós, pais, todos, e eu tive a certeza de que se lembrava de mim. Ficou visívelmente triste ao saber que todos já tinham partido, mas não disse nada - apenas levantou a mão até a minha face, num carinho simples.

“-Eram todos muito bonitos!” – lembrou sorrindo – “E tu eras um rapagão enorme, que chorava muito alto ! Ninguém conseguia dormir, quando choravas, tínhamos que levar-te para as cozinhas , no piso mais  distante dos quartos, para não incomodares as outras parturientes...”

Eu lembrava-me de ter ouvido essa mesma história contada por minha mãe. Não havia dúvidas que falávamos de mim. Aos poucos ambos riamos baixinho de pequenos detalhes que ela lembrava e me contava, como eu tinha esperado que fizesse, e eu estava muito contente por ter ido visitá-la.

 Mas rapidamente ficámos sem assunto, e eu entendi que estava interferindo com a rotina dela na clínica. Levantámo-nos ambos, e eu preparava-me para me despedir, quando ela me disse:

“-Foi um grande presente que me deste, vindo aqui. Foram tão pouquinhos, os que voltaram...Parece que foi ontem que nasceste, e hoje estás aqui, um homem feito. Mas agora é a minha vez de dar-te um presente, também. Vamos ver se consigo fazê-lo. Vens comigo até à cozinha ?”

Acompanhei os seus passinhos rápidos, enquanto  ela, deliciada, me ia apresentando a todos os que encontrávamos. Finalmente, na cozinha, dirigiu-se a um pequeno pátio coberto onde, num poleiro,  um papagaio dormitando aproveitava um resto de sol.

A alegria que manifestou quando a viu, e a satisfação com que deitava a cabeça na mão dela para ganhar carícias, disse-me que eram velhos amigos. Pouco depois de brincarem um pouco, ela começou a dizer baixinho “ Bé-bé... bé-bé... “   e o papagaio ficou arrulhando qualquer coisa, ininteligível.  E ela foi  insistindo “ bé-bé...bé-bé...”, até que nitidamente se escutou uma criança chorando, mais e mais.  E finalmente Frederico, o papagaio,  chorava a plenos pulmões, exatamente igual a uma criança em volume desesperante.   

Então ela, olhando para mim, disse:

- Este é o meu presente. Escuta: - esse chorão és tu, poucos dias depois de nasceres, quando te trazíamos para a cozinha para a tua mãe poder descansar.

Olhei novamente para o papagaio. Contente por colaborar, Frederico chorava  alegremente olhando para mim, num berreiro ensurdecedor...

2 de jun. de 2011

2 - GARÇAS






Não sei de que tempo me olham,
por um momento apenas,
interrompendo o seu jeito de nada fazer.

Depois,
regressam aquele nadismo branco-gritante, 
e somem destacando-se contra a paisagem
amorfa de mentiras que, teimosas,
se empenham em destruir.

E incomodam, assim teimando,
porque destroem as desculpas.
Porque vivem, e se alimentam,
dum rio onde se diz não haver vida,
e apontam como um dedo branco,
silente mas acusatório, hediondos,
os muros desprezados nos fundos dos quintais
- para onde ninguém olharia se não fossem elas.


Porque apontam os canos brancos de plástico
ostensivamente despejando segredos
nas águas que são  (não são ?) de todos.


Porque chamam a atenção para  garrafas  plásticas,
para as sacolas óbviamente desnecessárias,
e para os objetos mais estranhos
que a deseducação e o desleixo produzem.


Incomodam porque regressaram e estão aí,
e elevam ao alto um restinho de alma de poeta
que ainda existe em nós, quer o saibamos ou não.


Incomodam, porque foi preciso recolher
e tratar o esgoto da cidade.


Incomodam porque foi preciso aprofundar
o leito das águas e limpar lixo acumulado
por gerações de olhar indiferente.


Incomodam porque fazem ninhal
nas árvores beirando as casas,
numa esperança de vida.

Numa esperança de continuidade a que somos obrigados a corresponder enquanto nos olham
com alguma displicência.
Como se viver ou morrer
não lhes fosse coisa muito importante.
Não tanto quanto as nossas consciências.


São assim as garças de Itapecerica.
(imagem Google )