27 de set. de 2011

25 - VAGO


Queria um olhar límpido e vago,
 onde não houvesse mistérios,
mas apenas  a total falta de ansiedade
duma manhã  abrindo-se a outro nascer de sol.
Queria uma erva molhada e um cheiro de sonhos 
remanescentes, em azul profundo.
Campos atávicos entre montanhas
onde  nuvens impossíveis chorassem
 aves insuportáveis, em risos de ave.
E árvores, como dedos erguidos
a um céu impossível de se apontar.

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12 de set. de 2011

24 - PONTO G



Há numa praia da minha infância,
por entre as rochas amontoadas  aos milénios,
um pequeno espaço ignoto e escondido
onde é preciso machucar os pés para se chegar.
Na baixa-mar por ali fica, vagamente exposto,
coberto pela sujeira desdenhada pelo oceano
e pelos olhares de quem atenta mais longe,
preferindo  a dificuldade dos  horizontes
à feiúra  do lixo urbano naufragado.
Na praia-mar fica submerso e muito fundo,
e o pequeno espaço muda de cor

consoante a cor da luz percorre todo o espectro,
num acordo antigo com as ondas na superfície.
E muda de forma e torna-se limpo e são
consoante o mar  flutua o lixo e o leva,
e deixa apenas  aquele  pequeno ponto
que mantenho desconhecido dos outros
encaixando nele uma pedra igual a tantas.


E ninguém sabe, no meu mergulho,
desse tempo precioso que gasto por lá.
Nem do estranho prazer ritualizado
de retirar a pedra-camuflagem e,
no mais improvável de todos os gestos,
do encostar dos meus lábios à rocha áspera
num beijo que castamente me enche a boca
da água doce e pura que ela derrama,
e da celebração de um ato de amor fantástico
entre reinos naturais diferentes,
quase  iniciático e quase perdido.


Quase...

(Sempre há um leve crepitar chiado
de areias em frição, umas com as outras,
movidas pelo balanço cósmico das ondas.
Ou então de pequenas pedras ajustando-se,
ou quiçá corais num aplauso baixinho...
-ou é apenas tempo de regressar á superfície,
antes que a falta de ar já seja tanta
que fique maior que qualquer angústia,
e já não compense mais ter medo,
e a melhor escolha se torne ficar mais um pouco,
e, depois, um pouco mais ...)

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11 de set. de 2011

23 - ALTER EGO

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De vez em quando, lá muito de vez em quando, dou por mim a atravessar uma situação, ou uma fase, ou uma crise, ou algum tipo de novidade que me toca profundamente. E, em função disso somado a tudo o mais que já sou, prevejo que vai chover no molhado, e que se avizinha mais uma mudança em mim - coisa que tem sido frequente, seja em termos geográficos ou em quaisquer outros.

Fico preocupadíssimo e acabo escrevendo textos como este abaixo, que já data da última mudança.

Mas mesmo mudando, lá vou sobrando eu - em restos, talvez. Em todo o caso, o suficiente para me reconhecer ao espelho e naquilo que escrevo. Entretanto, a proximidade de uma fase destas sempre gera um momento de, sei lá ... despedida ! Vai que mudo para um outro qualquer, muito diferente ?  E as saudades que vou ter de mim ?

Por outro lado,  que delícia vai ser descobrir esse outro sujeitinho, heim?


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Sempre há um tempo
( um momento congelado entre tantos )
para se riscar na poeira acumulada dos silêncios
( como quem  o traça em fluidos golpes de esgrima )
o  caracter antigo e de simplicidade inexcedível
( de outra forma destoaria )
com que nos assinamos realmente.
( embora a areia mostre outros passos ensaiados ).

Sempre há um tempo
( o suspense  dolorido entre duas batidas de coração )
em que a distância é como uma estrada ao longe
( onde nos vemos passar acenando gestos de adeus )
por onde desfilam  os vultos de todos os outros
( demoramos a ver que não somos apenas nós )
olhando-nos num gesto  de  soslaio apressado
( repletos dessa mesma inveja que sentimos )
que só nos avalia a serenidade exterior
(ah ! como é doce a tranqüilidade dos outros )
enquanto rumam a lugares onde não queremos  ir.
( embora assolados por vagas de desejos  ).

Sempre há um tempo !
( embora ás vezes falte tanto...)



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9 de set. de 2011

22 - PARECE QUE FOI ONTEM



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Parece que foi ontem,
mas foi há muito tempo.
Uma manhã apanhou-me desprevenido
e lançou-me a sombra grata de uma árvore gigante
sobre umas folhas em branco, à minha frente,
à mesa de um café.
Depois disso, escrevi-me em manhãs,
todas quantas pude.
Escrevi-me em passos hesitantes
pelas alvuras exigentes dos papéis,
que sempre me iam encontrando como sou:
- de olhos quase vagos e quase atentos,
sentindo em redor, como se olhasse.
( Um adulador de detalhes, na opinião de alguém. )
Escrevi-me dispersamente,
espalhando-me pelas histórias
que tantas outras mesas  me contaram,
se sem saber que procurava repetir
a força avassaladora daquela primeira vez,
quando assim me vi, face á sede inesgotável
do papel em branco.
Escrevi-me em instantâneos dos outros, que fiz meus.
Foram segredinhos, surpresas e rompantes,
talvez partículas de passados
a que dei formatos e sons,
presença numa qualquer história
- que existiria mesmo sem mim.
Escrevi-me em rituais estereotipados, sofridos,
escolhas necessárias, tudo em nome de  algo
que um dos meus  futuros possíveis
pudesse eventualmente exigir um dia, quem sabe...
Mas o futuro tardava a chegar,
e era incerto que o identificasse
como sendo o meu...
Então,  parece que foi ontem, 
mas já foi há muito tempo
que me escrevi em passos lentos
pelas muralhas da cidade,
e em todas as fachadas brancas
das casinhas sorrindo para o sol;
E em cada rua calçada de pedras antigas
ecoando vozes de crianças;
E em todos os cais, 
e no ruído quente de todos os bares,
e caminhando nas noites
que os outros evitaram receosos.
Em todas me escrevi, com um olhar de adeus
onde havia uma lágrima
que humedeceu outras terras,
muito além do solo onde cravei os pés.
Escrevi-me em cânticos inúteis de louvor
a valores desnecessários,
e em registos de memórias merecendo serem vagas.
Escrevi-me em buscas que jamais terminarei,
e em sonhos que jamais  saberei parar de sonhar.

Parece que foi ontem,
e nem tem sido há tanto tempo...
Escrevi-me um pouco por toda a parte.
Encontrei-me um pouco por todo o lado.
Li-me entre pilares de pedra antiga,
erguendo-se de águas infinitas até ao horizonte,
que marulharam  versos meus
repletos de sal e de destino.
E de lugares por saber...


Out/2011


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