Há numa praia da minha infância,
por entre as rochas amontoadas aos milénios,
um pequeno espaço ignoto e escondido
onde é preciso machucar os pés para se chegar.
Na baixa-mar por ali fica, vagamente exposto,
coberto pela sujeira desdenhada pelo oceano
e pelos olhares de quem atenta mais longe,
preferindo a dificuldade dos horizontes
à feiúra do lixo urbano naufragado.
Na praia-mar fica submerso e muito fundo,
e o pequeno espaço muda de cor
consoante a cor da luz percorre todo o espectro,
num acordo antigo com as ondas na superfície.
E muda de forma e torna-se limpo e são
consoante o mar flutua o lixo e o leva,
e deixa apenas aquele pequeno ponto
que mantenho desconhecido dos outros
encaixando nele uma pedra igual a tantas.
E ninguém sabe, no meu mergulho,
desse tempo precioso que gasto por lá.
Nem do estranho prazer ritualizado
de retirar a pedra-camuflagem e,
no mais improvável de todos os gestos,
do encostar dos meus lábios à rocha áspera
num beijo que castamente me enche a boca
da água doce e pura que ela derrama,
e da celebração de um ato de amor fantástico
entre reinos naturais diferentes,
quase iniciático e quase perdido.
Quase...
(Sempre há um leve crepitar chiado
de areias em frição, umas com as outras,
movidas pelo balanço cósmico das ondas.
Ou então de pequenas pedras ajustando-se,
ou quiçá corais num aplauso baixinho...
-ou é apenas tempo de regressar á superfície,
antes que a falta de ar já seja tanta
que fique maior que qualquer angústia,
e já não compense mais ter medo,
e a melhor escolha se torne ficar mais um pouco,
e, depois, um pouco mais ...)
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