15 de nov. de 2012

57 - RECEITA PURA





Tempero a minha tinta com pigmentos certos 
em pequenas doses, de que nunca me apercebi.
E são sempre os mesmos, os frascos que deixo abertos,
nessas prateleiras onde guardo de tudo o que colhi.

Não são bem  memórias,   nem chegam a ser  recordações.
São mais  esboços,  algumas coisas apenas começadas,
às vezes  apenas  imagens,  ou apenas  vagas sensações.
Raramente convicções plenas, ou certezas já formadas.

São também fragmentos, pedaços de coisas, objetos costumeiros,
papéis onde lancei linhas como gritos de alma, interrompidos,
arquivos de pensamentos que  se inexplicaram, perdidos,
num mar de acasos  displicentes,  travestidos de ordeiros.

A um pouco de tudo isso, misturo a vontade e a sede do momento.
faço a tinta com que me pinto,  na tela do que vou podendo ser,
em traços fortes de emoção e uma ou outra lágrima de prazer,
até que de mim reste algo mais concreto do que apenas o sentimento.

É dessa forma, vendo  paredes cobertas de tantos pedaços de mim,
que recolhi   em tantos rumos inesperados  por onde me espraiei,
vendo  as marcas do uso dizerem-me quais foram os que mais usei,
que entendo melhor  como, afinal,  sou,  e como me tornei  assim.

E se, nesse processo de tornar-me em mim e  dar-me forma,
me dei a tanto, e em tanta coisa leio o formato da minha mão,
que privilégio conhecer-me assim por dentro, saber-me  razão,
e escolhas além dos acasos, e improvisos além da norma...

Depois encaro os dias, senão refeito, pelo menos renovado.
E se não encontro motivos para orgulho, nessas cores que exibo,
por certo também nelas não encontro razões para o ver ferido
e o meu caminho estende-se em passos de caminho caminhado....

E quando ocasionalmente me esqueço do básico que aprendi,
e dou por mim assim cabisbaixo, e vejo  o triste que eu estou,
olho os meus frascos abertos, pago o preço de ser quem  sou,
e repinto-me com as cores que, aos poucos, para mim escolhi.



Julho 2010 / rev 2012

( imagem do google )

Um comentário:

  1. Salve, Henrique!

    que prazer poder rever tuas letras, amigo. Muito além das métricas nem sempre naturais, este teu belo poema confessional possui ricas sonoridades ao longo de todo ele, um agradável deleite aos meus ouvidos.

    O paralelo que aqui estabeleceste entre as cores do auto-conhecimento e aquelas do espectro cromático, é, perdoa-me o jogo de palavras involuntário, deveras luminoso. Que maravilha de texto, Henrique, meus aplausos!

    E foi um prazer também rever seus comentários às minhas esporádicas letrinhas de alumínio, após tanto tempo. Obrigado, meu caro!

    Um forte abraço do
    André

    P.S.: Espero ter provado quer não sou um robô... ;-)

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