14 de set. de 2012

53 - FALAR SILÊNCIOS






Houve um dia, já não sei quando,
em que a Rua passou a ser caminho, apenas,
e as vitrinas  não tiveram mais o apelo colorido
dos detalhes efervescendo  a imaginação.
Emoldurando portinholas de mistério,
portões verdes deixaram de fervilhar
os segredos das árvores douradas
pelos fins de tarde, nas entradas das casas.
E as ramagens  não viram mais reflectidas,
em brilhantes espelhagens de  indiferença,
nos olhares frios das vidraças sobranceiras,
as suas formas ondulantes de vibrar com a vida.
E na pedra branca dos muros alvos, brilhantes,
forrados de ainda mais pedra branca,
revistas coloridas deixaram súbitamente
de mostrar um outro mundo e outras gentes,
disposta em arames, exposta em arames,  quais
enormes sorrisos estáticos, arqueados entre pregos,
prometendo  paraísos ao vento,  intermitentes,
seguras com molas de roupa,
- a preços de moedas na calçada…
E todos que passavam tinham nome, e chamavam-se,
e sabiam-se,  e os seus medos eram simples:
temiam não haver mais quem quisesse flores,  
ou  uma revistinha de bordados em ponto cruz, 
ou fruta em saquinhos, cristalizada.

E houve um dia,  já não sei quando,
que passei correndo, cheio de pressa, 
e não vi mais a minha sombra de menino
a alongar-se pelos detalhes dos cantos.
E nem me saudou o reflexo costumeiro
nas vidraças das janelas,  agora fugidio - outro.
E quando me chamaram, não respondi …
mal tive tempo de olhar em volta.
Na pressa foi outra voz, também minha,
que disse olá – também nem sei a quem !
E corri tanto, tantas vezes fui e voltei
sem descanso,  tantas sem rumo crível,
que um dia apenas escutei silêncio na rua,
e vi que já era só um caminho –  e não mais.
E nos olhos com que me olhei,
como se a Rua eu fosse,
e me visse assim, ali,
também não me reconheci no que via.                                                   
E nos olhos com que então olhei a Rua,
toda a eloquência  do cansaço já adivinhado
me disse que não era a minha.
Nem meu, aquele caminho.
Nem eu, quem a estava olhando.

Então construí meu barco, esculpi mil remos,
velejei, remei meio mundo furando ondas,
lancei âncora, nadei, e vim…
Cheguei já caminhando,  e exaurido
pelo no medo de não chegar.
Cheguei oco, estranho, alienígena.
Os outros soando ao longe, como
alguém que não fala os meus silêncios.
Os outros, que não sabem onde fica
aquela  minha rua,
onde tenho absolutamente que passar,
para que deixe de ser apenas caminho.
E para que retome a vida,
e me traga à vida.
E me puxe de volta, me refaça e reconstrua,
e rompa com unhas que o tempo 
transformou em garras,
esse  adiamento que me impus.
E aqueles que me esperam travestido de poema,
ou de mim, ou de mim, ou de tantos que eu sou,
-dos tantos que todos somos-                                                                 
saibam que não estou pronto!

Falta-me ainda encontrar aquele menino
que percorria aquela rua, maravilhado,
sem imaginar que ela fosse um caminho.

Falta-me fazer com que Rua e caminho
se completem com aquilo que agora sou.
E fazer com que ambos me contem
as histórias de mim
que eu não sabia que eram história...


(imagem: creio que City Fog Night de Charles Campbell, colhida na net )


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