Encontrei ontem, mais uma vez, uma fita cassete que andava
no porta-luvas do carro fazia um tempão.
Consegui finalmente deitá-la fora, sentindo que se tinham
exaurido todas as desculpas que negociava comigo mesmo, no sentido de a manter.
O aparelho de som deste carro, não reproduz fitas. Apenas CD’s. Da mesma forma, o do carro anterior,
também não. Nem o outro, antes, nem o anterior a esse. E, com toda a certeza,
como enfeite, eu não a traria comigo...
Então, porque a carreguei todos estes anos?
Carreguei-a pelas estradas e pelos calçamentos impiedosos de
Itapecerica, inútil, barulhenta e cheia de vibrações, desajeitada de
acomodar... - mas aconchegante ! Uma
pequena ilha de certezas, imutáveis, no meio de um oceano de coisas mudando
muito depressa, no fluir dos meus dias.
Lembro-me de a ter gravado, querendo que fosse eterna, antes
de vir para o Brasil. Escolhi apenas
músicas que me tocavam profundamente, e municiei-me de equipamentos de
ultimíssima geração, visando a ultra-qualidade. O resultado final foi
fantástico, e realmente serviu-me de apoio, constituindo uma espécie de âncora
emocional que me manteve estável nos primeiros tempos, neste meu novo país.
Na verdade, até não tocou muitas vezes. Apenas quando já não
estava agüentando mais música axé, que entretanto se apossara das rádios vinte
e quatro horas por dia, até ser destronada por essa enorme onda monotemática de
música sertaneja, que dura até hoje. Pensando melhor, creio que, afinal, tocou muito, sim. Tocou para valer...
Apesar disso, sempre brilhou como uma pedra preciosa, lá no
fundo do porta-luvas, socorrendo-me quando, inconformado com o que me era dado
ouvir pelas rádios, ansiava por mais, querendo melhor, diferente, noutras
línguas de outros povos, mais variado, mais qualquer coisa que não fosse apenas
aquilo.
Mas o tempo, esse danado, trouxe com ele a habituação, o
entorpecimento, e o meu ouvido foi-se re-educando para essa nova realidade, tão
árida. Aos poucos, outras realidades musicais, outras experiencias, foram
ficando mais e mais débeis, menos objeto de desejo, mais amorfas e vagas.
( Neste ponto, abrem-se outros raciocínios, colaterais,
quando penso como somos passíveis de ser educados até para a aridez, bastando
para isso teimar sobre um mesmo tema, sem permitir temas alternativos. Torna-se
clara a importância dos mass-media, e das agências de publicidade, nos seus caríssimos charlatanismos experimentais...)
E foi também o tempo, inapelável, quem trouxe outros carros,
outros aparelhos de som, e a boa da minha fita-cassete foi perdendo a razão de
ser, até se tornar nessa inutilidade que carreguei carinhosamente, por tanto tempo.
Como última homenagem, amortalhei-a num guardanapo de papel,
procurei um cantinho relativamente limpo, no caixote do lixo, e aí a joguei com
um gesto de também desnecessário dramatismo, sentindo que, de alguma forma,
alguma coisa se completava nesse ato sucinto, libertador, e estranhamente
dolorido.
Pensando a respeito, reconheço com alguma inegável
nostalgia, claro, que é perturbadora a existência desse horizonte maior, de que
ninguém fala. Mesmo quando cabe numa caixinha de plástico transparente,
enrolado numa cassete.
Amanhã, viajando, escutarei a cópia que mandei fazer para
CD. Pirata e sem alternativa.
Outubro de 2007
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