Não estava a pensar em nada de especial, apenas deixava a mente vaguear a seu bel-prazer, sem muita apreciação do que ela fazia. Os pensamentos sucediam-se sem me despertarem grande atenção ou críticas. Modorrava.
E foi assim, inesperadamente, que me deparei com uma recordação antiga. Não a mais antiga das que tenho, mas seguramente das mais antigas.
Da minha rua de hoje, dum prédio distante em obras, chegavam-me pela janela os ruídos de marteladas em concreto, coisas caíndo e sendo arrastadas, motores trabalhando. Chegavam-me também os aromas do rio, tão próximo, e de vagas flores em finais de tarde na varanda de alguém.
Talvez tenha sido tudo isso que, somando-se, me transportou para o meu quarto de criança, muito menino ainda, e para um início de dia, cheio de aromas e sons.
Dessa janela de então vinham-me os ruídos muito vagos do dia que começava e os cheiros do jardim, onde o canteiro das ervilhas-de-cheiro, misturadas com outras flores noturnas, terminava de adocicar a noite. Também o pessegueiro se erguia alto em promessas de futuro, ostentando pequenas flores rosadas e um cheiro já presente de frutos doces e carnudos.
Um barulho irregular de pedras batendo no cimento do quintal, foi-me despertando e incomodando até me fazer abandonar o meu sono tranquilo de criança feliz e me levar a olhar lá para baixo pela janela.
Ainda fui a tempo de escutar vozes e ver mau pai junto do velho portão de ferro, onde eu cavalgava meus sonhos de faroeste com penas de galinha na cabeça e, na mão, um pau comprido que se transformava em lança. Ele antecipara-se a averiguar a causa dos ruídos e acabava de pôr na rua um rapazote que tinha invadido o nosso quintal. Era visível o esforço que meu fazia para se controlar e não perder a cabeça, e minha mãe procurava acalmá-lo o melhor que podia.
Percebi depois o que o que se tinha passado. O rapazote, já bem no fim da adolescência, tinha visto da rua um pequeno cágado que tínhamos no jardim, e que na maior parte da sua calma vida ficava escondido na terra, entre folhas caídas e plantas, mas que nesse dia caminhava sobre o cimento do caminho da entrada, visível e desprotegido.
Claro que algumas vezes o víamos a beber água nos pratos dos vasos, ou meio mergulhado numa poça que meu avô tinha feito exactamente para isso, afundada no chão e para onde escorriam as regas diárias do jardim. Mas na verdade quase nem nos lembrávamos dele. Era apenas uma presença tímida por ali, que vivia a sua vida conosco. Uma curiosidade que eu, menino, tinha sido ensinado a respeitar e que me divertia com seus movimentos lentos e desajeitados.
Foi essa essa pequena criatura que atraíu o intruso. Cheio de um ódio incompreensível para mim até hoje, saltou por cima do muro, e virou o pequeno cágado indefeso com a barriga para cima. Depois atirou-lhe pedras, uma após outra, até que o pequeno animal sangrou abundantemente, a sua couraça rachada pelas pedradas e incapaz de protegê-lo de uma agressão assim.
Hoje entendo que quando cheguei perto, já os meus pais sabiam que ele não iria sobreviver. Mas assim mesmo, lembro-me que tentaram salvá-lo, e que fizeram uma pequena encenação, em meu benefício. Lembro-me vagamente de o terem pincelado com mercurocromo, enquanto ele agitava cada vez menos as patinhas. Depois o meu pai enfaixou com gaze a carapaça, tentando mantê-la junta para lhe dar uma hipótese ( mesmo que improvável ) de soldar. Mas como ajudar um cágado, um bicho tão diferente de todos os outros?
Pouco depois tinha morrido, e também em meu benefício foi feita uma pequena cerimónia de adeus em que o enterramos dentro duma caixinha de papelão. Creio que com ele ficou aquela parte ideal, encantada, da infância de cada um de nós, que desagua na realidade mais cruel, e muitas vezes incompreensível, da vida e do mundo dos outros.
Tudo foi feito com muita suavidade, e realmente meus pais conseguiram não alimentar a minha revolta e fazer com que me esquecesse do ocorrido até há pouco dias, tantas décadas depois.
Raramente vou à minha cidade natal, onde tudo isso aconteceu. passou. Mas a casa ainda existe, com o jardinzinho lá ao fundo do quintal, e na próxima vez que por lá passar vou lembrar-me de como foi bom ser menino ali, e recordarei o meu pequeno cágado - morto apenas por estar à vista.
Chamava-se Berloque.
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