Há numa praia da minha infância,
por entre as rochas amontoadas aos milénios,
um pequeno espaço ignoto e escondido
onde é preciso machucar os pés para se chegar.
Na baixa-mar por ali fica, vagamente exposto,
coberto pela sujeira desdenhada pelo oceano
e pelos olhares de quem atenta mais longe,
preferindo a dificuldade dos horizontes
à feiúra do lixo urbano naufragado.
Na praia-mar fica submerso e muito fundo,
e o pequeno espaço muda de cor
consoante a cor da luz percorre todo o espectro,
consoante a cor da luz percorre todo o espectro,
num acordo antigo com as ondas na superfície.
E muda de forma e torna-se limpo e são
consoante o mar flutua o lixo e o leva,
e deixa apenas aquele pequeno ponto
que mantenho desconhecido dos outros
encaixando nele uma pedra igual a tantas.
E ninguém sabe, no meu mergulho,
desse tempo precioso que gasto por lá.
Nem do estranho prazer ritualizado
de retirar a pedra-camuflagem e,
no mais improvável de todos os gestos,
do encostar dos meus lábios à rocha áspera
num beijo que castamente me enche a boca
da água doce e pura que ela derrama,
e da celebração de um ato de amor fantástico
entre reinos naturais diferentes,
quase iniciático e quase perdido.
Quase...
(Sempre há um leve crepitar chiado
de areias em frição, umas com as outras,
movidas pelo balanço cósmico das ondas.
Ou então de pequenas pedras ajustando-se,
ou quiçá corais num aplauso baixinho...
-ou é apenas tempo de regressar á superfície,
antes que a falta de ar já seja tanta
que fique maior que qualquer angústia,
e já não compense mais ter medo,
e a melhor escolha se torne ficar mais um pouco,
e, depois, um pouco mais ...)
.
Henrique boa noite!
ResponderExcluirPasseando por páginas de amigos em comum segui seu link e entro aqui para conhecer um pouco da sua letra.
Já percebi que aqui domina uma letra de prima qualidade, Um espaço de bom gosto com textos bem escritos e estruturados, coisa de quem entende das coisas! Parabéns!
Realmente foi um prazer conhecer seu espaço.
Uma linda noite!
Ange.
Meu querido amigo poeta,
ResponderExcluirChego a imaginar o Ponto G nos recônditos mais íntimos da alma, aqueles escondidos dos outros e até de si mesmo, que teimam em ficar submersos, mas que ainda assim podem vir à tona, flutuar e descobrir-se à luz. E quando uma pedra se encaixa, naquele ponto tão especialmente peculiar, substituindo uma outra pedra-camuflagem, remete ao prazer, ao deleite do mais intenso mergulho, no qual descobre-se que aquele lugar, aquele momento, é provavelmente o que deseja-se, ter os pulmões infinitamente inflados de ar, para que nunca faltasse a possibilidade de lá permanecer pelo tempo exatamente necessário, de ser feliz.
Renovo sempre o meu prazer ao saborear as suas criações.
Meu abraço, meu amigo.
Celêdian
Sem contudo ter o brilhantismo da verve e da perspicácia da nossa grande amiga comum e grande literata Celêdian Assis, devo conquanto lhe dizer, meu querido Henrique, que o seu poema é, pelo menos, instigante. Nele, a metalinguagem abunda, visivelmente. Construções evocativas, paralelismos e simetrias de imagens bem urdidas, e que desaguam em saborosas metáforas, levando-nos ao prazer intelectual mais refinado.
ResponderExcluirSome-se a tudo isso, o deleite de sonoridades lusitanas e que tanto me apraz. Decididamente, o estilo se consolida a cada texto e isso nos deixa, a nós, seus leitores, realmente felizes. Obrigado pelo excelente texto, meu caro amigo.
Um forte abraço,
André