25 de jul. de 2024

200 - EVANESCENTE

 







Creio que esperava

que numa dessas noites vulgares, anónimas,

impossível de apontar ou distinguir,

algo acontecesse que me fizesse crer

que já bastava, que agora era de vez,

que não valia a pena a teima constante

nas letras de todos os dias,

que era chegado o fim.


Mas não foi assim.

Apenas não foi, nem sequer assim.


Um dia passou, sem que o notasse, ligeiro.

Depois passaram outros, sem nenhum mal advindo.

E foi ficando claro, nessas palavras

que não me procuravam para nascer,

nessa coisa desenrolando-se

como balanço de barco em mar chão,

que navegava num rumo que, tendo origem,

era sem porto de destino.


Talvez por isso, as sombras das nuvens

se mostraram supérfluas e fugazes,

breves nos seus caminhos erráticos

ao meu redor, nunca de grande trovoada.


Tampouco as chuvas

foram mais do que água caindo, vital e

necessária para o mundo,

jamais as lágrimas tristes que um dia receei ver

molhando o que o meu olhar podia abarcar.


Não encontrei no espelho trejeitos de surpresa.

Nem de desistência, no que apenas não nasce.

Nem de impossibilidades, num futuro sempre estranho.

Nem de paz, lá onde se debatem as emoções.

Apenas a liberdade profunda, sem compromissos

nem datas, sem expectativas ou desafios,

de ir sendo ao acaso dos dias.


E assim, evanescente e cansado,

sem nenhum tipo válido de adeus,

deixo às palavras o etéreo fardo de me encontrarem.


Ou não...


18 de mai. de 2023

199 - HAVIA UM CAIS




Havia um cais.

Ficava lá depois da última praia.  

Depois do último molhe de pedras amontoadas,

que amansavam às ondas o seu avanço.


E nós esperávamos, ainda longe,

que chegasse a hora certa.

Depois caminhávamos às pressas,

e ríamos quando a espuma que vinha 

já nos chegava aos pés.

E sempre acabávamos a correr muito,

com a água cada vez mais perto, 

apertando-nos contra as rochas

num contra-relógio juvenil,

insano e perigoso.


E quando o areal ia terminando,

e já não havia mais lixo

senão aquele que o mar trazia,

nem se viam outras pegadas 

que não fossem as que deixávamos

-sabíamos que o momento ficava sério.


Parecia que gritavam avisos, as ondas,

e havia grasnados de protesto

nos ninhos das rochas mais altas, 

das falésias cheias de sol.



Mas então já não podíamos voltar atrás,

era o mar que nos empurrava para o cais, 

de medo escondido nos olhares

e nos risos nervosos com que desafiávamos

o momento, apesar de não haver outros

tão alegres nesse mundo em que julgávamos 

que Deus nos deixava ousar destinos.


Por fim chegávamos, 

já com a água espumando nas coxas,

sabendo que não havia  outro caminho.

Ninguém nos seguiria, mas quem viesse

precisaria esperar que vazasse 

essa maré que só agora começava a encher.


E se isso  fazia de nós prisioneiros,

voluntários e contentes,

também nos tornava donos do tempo 

por todo um dia de marés.


Sim, havia um cais.

Tinha um sossego que era todo seu,

mesmo com os gritos das gaivotas

e o marulhar das águas,

o cheiro húmido do sal nas rochas

e o ruído distante da cidade que teimava

em fazer-se ouvir.


Ouviam-se nas tábuas velhas 

vozes que vinham do fundo,

onde ondas rolavam pedras.

Mas nós, apaixonados, 

pensávamos que eram beijos,

segredos entre mar e seixos,

e tudo o que rimasse

com os abraços escondidos 

das águas com os pilares.


E havia também um ranger antigo 

de madeira que se espreguiçava ao sol,

sorria ao sol e, estalando de quente, 

nos embalava  os sonhos lentos 

de quem só pensa em céu azul,

sem nuvens e sem pressas,

e naqueles beijos fantásticos 

que só troca quem é dono do tempo,

e maior do que a vida

- e pouco se importa com as marés…


CopyrightHenriqueMendes/2017

20 de jul. de 2022

198 - ASSIM É

 




Para

que encontres o teu poema

basta uma noite amena

e que estejas  no jardim


que teus olhos vejam beleza

onde sintas a firmeza

de caminhar até ao fim


e se ainda não estiveres seguro

derruba a casa mas deixa o muro

que ninguém sabe bem sua raíz


sem percorrer em seus passos

trabalhos, amigos e abraços

e os campos santos do seu país


-nota que eu tampouco sei

se um dia conseguirei

chegar a  mostrar-te de mim


esse pouco que também tenho

feito longe, lá de onde venho,

um destino que se escreve assim


em letras onde pinto como em telas

gritos mudos, mas  abertas janelas

a mundos tão perto, tão longe de mim



(POEMA ESCRITO ORIGINALMENTE EM ESPANHOL, RETROVERTIDO AO PORTUGUES )

COPYRIGHTHENRIQUEMENDES2015

15 de jul. de 2022

197 - CANTO CHÃO

 



 

 

Meu canto é chão, profundo.


Pesadas  são as cores das minhas paisagens,

em  acasos de pincel e tinta.


Errantes são meus trilhos, em pegadas incertas

pelas poeiras dos caminhos ermos,

que  ninguém mais percorre.


Mágicas, as vozes que falam por mim,

em longas frases, roucas e singelas.


Forte, é essa vontade que me consome

e gera  linhas cheias de palavras, como bálsamos.

Imensa, a extensão do meu querer, repetindo-se

em plágios de mim mesmo.


Velhas, essas ruas calçadas de negro,

nas noites claras de tantas cidades iguais,

onde  tantas vezes me procurei nos outros,

sempre tão esquecido de mim...

 

 

 

CopyrightHenriqueMendesJan/2008

 

 


13 de jul. de 2022

196 - PARECE QUE FOI ONTEM





Parece que foi ontem,

mas foi mesmo há muito tempo...


Uma manhã apanhou-me desprevenido

e lançou-me a sombra grata de uma árvore gigante

sobre umas folhas em branco, à minha frente,

à mesa de um café.


Depois disso escrevi-me em manhãs, 

todas quantas pude.


Escrevi-me em passos hesitantes 

pelas alvuras exigentes dos papéis,

que sempre me iam encontrando como sou:

- de olhos quase vagos e quase atentos,

sentindo em redor, como se olhasse.

( Um adulador de detalhes, na opinião de alguém. )


Escrevi-me dispersamente, 

espalhando-me pelas histórias 

que tantas outras mesas  me contaram, 

se sem saber que procurava repetir 

a força avassaladora daquela primeira vez, 

quando assim me vi, face á sede inesgotável 

do papel em branco.


Escrevi-me em instantâneos dos outros, 

que fiz meus. 

Foram segredinhos, surpresas e rompantes,

talvez partículas de passados 

a que dei formatos e sons, 

presença numa qualquer história 

- que existiria mesmo sem mim.


Escrevi-me em rituais estereotipados, sofridos, 

escolhas necessárias, tudo em nome de  algo 

que um dos meus  futuros possíveis

pudesse eventualmente exigir-me um dia, 

quem sabe...


Mas o futuro tardava a chegar, 

e era incerto que o identificasse

como sendo o meu...


Então,  parece que foi ontem,  

mas já foi mesmo há muito tempo,

que me escrevi em passos lentos 

pelas muralhas da cidade,

e em todas as fachadas brancas 

das casinhas sorrindo para o sol;


E em cada rua calçada de pedras antigas 

ecoando vozes de crianças;


E em todos os cais,  

e no ruído quente de todos os bares,

e caminhando ao caso nas noites 

que os outros evitaram receosos.


Em tudo isso me escrevi,

com um olhar de adeus 

onde havia uma lágrima

que humedeceu outras terras, 

muito além do solo onde cravei os pés.


Escrevi-me em cânticos inúteis 

de louvor a valores desnecessários,

e em registos de memórias merecendo serem vagas.


Escrevi-me em buscas que jamais terminarei,

e em sonhos que jamais  saberei parar de sonhar.


E parece que foi ontem,

mas nem terá sido há tanto tempo,

Que me escrevi um pouco por toda a parte.

Que me encontrei um pouco por todo o lado.

Que me li  entre pilares de pedra antiga, 

erguendo-se de águas infinitas , 

que marulharam  versos meus

até  qualquer outro horizonte,

repletos de sal e de destino.

E de lugares por saber...


6 de jul. de 2022

195 - JAMAIS TE SONHEI MAR...

 




Jamais te sonhei mar,

imensidão, infinitude.

 

Mas sempre ambicionei

que em ti o meu nado

fosse poema e deslumbramento,

carícia total em gesto conhecido,

elegância escolhida sempre.

 

Sempre quis que as palavras

fossem passos paralelos dando voz

a caminhos convergindo ao sublime.

 

Por isso nunca me seduziram os murmúrios

nem as mensagens pouco firmes das lágrimas,

em emoções que a dúvida profana.

 

Por isso nunca olhei menos longe

que a distância confortável da abstração,

onde se tornam difusas as formas e os medos.

 

Por isso nunca disse em sussurros

o que o peito me ordenava aos gritos.

 

Por isso tantas vezes calei a alegria

da erva molhada das manhãs,

insisti em não entender céus luminosos

e fiz-me surdo a dobrados de sinos bucólicos,

que me remetiam a outros tempos

-onde o tempo ainda não era um luxo

e, resultando de um lento passado,

preconizava um futuro

onde tudo estava por escrever…


CopyrightHenriqueMendes2017


28 de jun. de 2022

194 - SER DO VENTO


 

Eu não parei para escutar o Vento. Mas a sua voz chegava-me como uma carícia antiga e forte, carregando meiguice e conhecimento. Como ignorá-la?

Então entreguei-me e escutei realmente, como nunca tinha escutado antes. E o Vento falou-me de mim.

 

Sussurrou-me aos ouvidos  memórias de criança que eu nem sabia que tinha, nas quais me reconheci por entre lágrimas e alegrias. Eram as raízes das minhas escolhas, sobre as quais me construí.

 

Depois soprou-me por entre os cabelos as histórias dos meus anseios antigos,  das esperanças  e das dúvidas, do empenho dos meus passos ao longo de tantos caminhos incertos, assombrados por tudo o que podia vir a não ser.  Eram as raízes dos meus medos, atingindo-me em arrepios de pele.

 

Mais tarde, num sopro quente, o Vento lembrou-me as histórias das minhas paixões. Falou-me dos amores em que me perdi, e do quanto sofri até me perder noutros tantos que me salvaram. Eram as raízes das minhas procuras, a base de passos erráticos testando os sentimentos.

 

Soprava morno, quando me falou de esperança e de sonhos, do peito mantido aberto para a vida, esperando dela uma carícia que, tantas vezes, não veio como eu esperava. Eram as raízes das minhas ambições, e das metas que queria atingir.

 

Não foi diferente, quando o Vento me falou de morte.  Não lhe pude escutar nenhuma melodia mais triste, nos assobios esporádicos das frinchas das janelas, nem foi gélido o seu hálito. Foi apenas o Vento, mais uma vez, revelando-me as raízes comuns da dor e da saudade.

 

Mas foi especial como uma carícia, quando me falou de eternidade, e me revelou as raízes da minha vontade de criar.

 

Eu não parei para escutar o Vento. E ainda não parei de o escutar. Os meus passos continuaram firmes, como firme é a sua voz ao longo dos meus caminhos, explicando-me paisagens que eu não veria de outra forma...



CopyrightHenriqueMendes/2011