A
mão reencontrou a forma que ela mesma impusera à madeira, muito tempo antes.Com
isso, houve uma espécie de estremecimento no mundo, ao redor. Uma vibração de ajuste. Um regresso à normalidade.
A mão segurou o
cabo do cajado com fluidez. Percorreu-o em carícias de dedos até ao castão de prata,
onde se abrigava o cristal puro. E
estes sentiram a textura, e tatearam os nós, tão conhecidos, num gesto antigo,
que sobrepunha doçura á experimentação.
Foi
então que percebeu o corpo inclinando-se para a frente, num discreto início de
movimento, que logo reprimiu. Os
primeiros passos, se os desse, como os pararia ?
Olhou
as sandálias de sola grossa, no chão. Por um momento, pareceu-lhe que voltava a ouvir-lhes a voz crepitada de quando caminhavam esmagando pequenas pedras e torrões de terra
pelos silêncios ermos dos caminhos,
enquanto iam absorvendo as histórias
espantosas de tantos lugares.
Mas
as velhas sandálias apenas descansavam na sombra da capa de lã e do chapéu,
ambos pendurados na parede, junto á grossa porta de madeira, ao lado do alforge
de couro escuro, e do cantil.
Todos
esses objetos familiares estavam há muito tempo na eminência daquele instante
por chegar, cuja aproximação agora se dava num crescendo de tensão quase
palpável.
E
todos, pela primeira vez, pareciam perceber que isso era partir. Não mais como
das outras vezes, quando apenas iam, sabendo que tinham ali o seu ponto de
regresso.
Por
isso, tudo ao seu redor foi ficando especial, quase mágico, e uma luz, que
parecia vinda do interior das coisas, brilhou suave, e acrescentou solenidade e
honra ao momento.
Por
cima de todas as casas, uma leve fumaça ascendia, aromática, enchendo o vale com sutis aromas
de abastança.
Espalhou-a
o vento, que não trouxe rumores de passos.
Permaneceram silenciosos
os cães, sem
ladrar limites.
O
dia demorou a amanhecer, envergonhado.
Talvez
de ser apenas outro dia.
TRILOGIA DOS PASSOS - O VIANDANTE 2
( Março 2009)
Como a maior parte de seu textos, Henrique, este também mereceu releituras. E isso se deu, não apenas pela riqueza intrínseca do vocabulários e das imagens, mas também pela natureza da narrativa, da simultaneidade de descrição e comentário. Mister se faz assimilar uma e outro. Daí o porque deste seu estilo de crónicas(!) ser, para mim, tão maravilhosamente pessoal. Este environement de campagne, atemporal e despojado, a figura humana e seus objetos também atemporais, assume aqui as feições clássicas da narrativa de sagas, de lendas, da narrativa quase bíblica. E, ipso facto, o desenlace da observação se reveste de uma aura mística, quase sobrenatural, própria da literatura fantástica. Mas o Henrique, grande cronista, não esquece a sua inimitável assinatura: "O dia demorou a amanhecer, envergonhado. Talvez de ser apenas outro dia." Não é mais o autor, é texto que se completa por si mesmo. Excelente!!
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