27 de jul. de 2013

85 - GUARDANDO UMA PRECIOSIDADE

Ficheiro:JoaoCabral.JPG

 Escrever é estar no extremo 
 de si mesmo, e quem está 
 assim se exercendo nessa 
 nudez, a mais nua que há, 
 tem pudor de que outros vejam 
 o que deve haver de esgar, 

 de tiques, de gestos falhos,
 de pouco espetacular
 na torta visão de uma alma
 no pleno estertor de criar. 


   João Cabral de Melo Neto /FALECIDO EM 1999



26 de jul. de 2013

84 - GRÃO DE BICO



Eu não sabia que tinha um olhar pidão!

Mas a fome  bateu enquanto corria atrás daquele poema que eu sentia especial. Quase etéreo e, ao mesmo tempo, quase tangível - como devem ser os poemas que, por um milhão de razões ou por  nenhuma razão aparente, acabam se impondo no espaço em branco da folha à nossa frente.

Levei-o comigo, num diálogo interno intenso, tenso, táctil, enquanto desenhei todo um novo país de esquinas e ruas, e batalhas travadas por momentos e oportunidades pontuadas a vermelho e verde  nos semáforos da cidade que ia acontecendo sem que encontrasse nela um lugar onde comer.

E a minha fome já estava a tornar-se insustentável quando, dum momento para o outro, com trombetas de acaso milagreiro soando e tudo,  dei por mim num pequeno restaurante, com o carro estacionado quase na porta, escolhendo comida a meu bel-prazer.

Mantinha-me concentrado no poema, e meu pensamento devaneava intensamente a seu respeito, quando vi reflectido no espelho, em frente à magnífica salada de grão de bico que me preparava para comer, o meu olhar dividido entre o abstracto, o esfomeado e… o pidão.

Há momentos assim, especiais, que depois nunca mais se esquecem. São feitos de pequenas grandes coisas. Galáxias descobertas num momento fugaz, inesperado. Um prato predilecto, exibido numa luxúria de apresentação, num lugar absolutamente improvável, exponenciando ainda mais meus apetites e revelando expressões de olhar que passei a conhecer só daí para a frente - confesso.

Um momento assim é uma ilha. Uma memória isolada de todos os contextos, onde se volta muitas vezes. Cada vez menos por acaso, e cada vez mais pelo fascínio das surpresas que, até  sob o devaneio abstracto de um poema formulando-se, continuamos dando a nós mesmos pela vida fora.

83 - MOMENTOS



Momentos...Há momentos e  momentos!


Uns, que atravessamos com  o ímpeto próprio da convicção total, na velocidade de quem não tem qualquer espécie de dúvidas. Com o fulgor do acaso os atravessamos, sem sequer  ganharmos plenamente a consciência de que o fazemos. Ou de que eles, por si mesmos, constituem momentos específicos, aos quais poderíamos, se quiséssemos, atribuir endereços nas nossas memórias e, um dia, a eles regressar em passos mais lentos e mais atentos olhares.

Mas há outros também, que são cuidadosamente esculpidos. Produto de acarinhadas escolhas e de condições reunidas carinhosamente com vistas a um determinado fim: - o momento querido perfeito. O instante precioso, raro, que fizemos nascer  já querendo que ocupasse um lugar de destaque.

Acredito que o texto que se escreve, o quadro pintado em tantos cuidados, a voz lançada em emocionada declamação, são exemplos claros dessa procura pelo  momento único, eternizado.

Talvez destes, tão acarinhados, mais do que dos outros, frutos de acasos, construamos aquelas que acabam por serem as nossas recordações.  Preciosidades tão cheias de significado pessoal, tão cheias de nós, tão capazes de nos traduzirem, que acabam compondo aquela que, para nós mesmos, é a nossa imagem.

Então, provavelmente por a considerarmos nossa,  passamos a agir de acordo com ela numa tal coerência que habituamos os outros a um desempenho que lhes permite, mais tarde, esperar de nós um comportamento afinado com a imagem que (nós, não eles, afinal ) temos de nós mesmos.

E, com isso, acabamos criando armadilhas que nos forçam a perseverar em rumos que não são os nossos. Apenas os das nossas escolhas, que  um dia, em algum momento já desfocado pelo tempo, fizemos. E quem nunca se sentiu oprimido pela igualdade dos dias, pela rotina coerente ?  Ou encantado por isso mesmo ? Quem nunca sentiu que se paga o preço de se ser quem se é?

Mas as nossas recordações são o lastro do nosso navio, capazes de o manterem estável mesmo sob fortes ventos e intempéries. Nelas nos refugiamos, em total exclusão dos outros, quando queremos estar sós. Nelas nos refugiamos, selecionando, quando queremos estar com alguém, verdadeiramente a sós, num repisar de ecos.

As nossas recordações, são memórias tornadas inquestionáveis. Guardadas nos nossos termos, sem possibilidades de outras leituras que não sejam as nossas. Depuradas pelos nossos mecanismos internos de defesa, de maneira a que possamos priorizar as agradáveis, e esconder,  lá nos recônditos  profundos da mente, os horrores e as menos desejáveis.

Em pleno processo de faxina, surpreendo-me por verificar como são felizes as minhas recordações, na sua esmagadora maioria.  E quase agradeço aqueles que, de alguma forma, compartilharam esses momentos comigo… Por outro lado, como se faz, para agradecer ? Como se agradece algo que é tão pessoal como uma recordação, que talvez só nós sintamos digna de valor ?

82 - DESTINO



Há passos que não se dão!

Apenas aparecem dados, simplesmente. Como se, às vezes, a vida fizesse por nós  aquilo que nós não temos coragem de fazer.

Assim, seja por decisão tomada, ou por uma conspiração de acasos, vemo-nos postos nos trilhos certos, rumando aquele ponto onde presente e futuro se intersectam marcando um ponto.


Um ponto que marca um hoje pré-assinalado com um “x”, onde nossos passos já ecoam - ainda a medo, embora, ainda com receios e hesitações, embora - mas convergindo  já para esse último reduto da lógica  e do controle além do qual começa uma outra coisa, feita de valores mais esparsos e etéreos, espalhados por uma escala de tempo mais dilatada e  mais difícil de entender,  por tão maior que nós, à qual reverenciamos chamando-lhe destino –  e que subtilmente cultuamos também numa tentativa sempre esperançosa de nos ausentarmos de responsabilidades.

Não ausentamos. Sempre fazemos de nossa parte, até por omissão. E, às vezes, cuspimos contra o vento.


Porto Seguro/Bahia/ 2008

81 - LIVROS DIGITAIS






 Queria comprar um tablet, há uns tempos atrás. Pesquisava a esse respeito num oceano de promoções todas elas tentadoras,  quando uma delas me  atraiu olhar com uma frase simples, lançada quase com displicência para o meio daquela efervescência toda, das marcas, dos números, das vantagens:  - Compre um dos nossos, e ganhe dois milhões de livros. Intrigou-me. E fez com que uma outra questão acabasse por impor-se a tudo o que estava fazendo: - o livro, tal como o conhecemos, que futuro virá a ter ?





Pesquisei um pouco mais, e acredito que acabei comprovando uma frase de há muitos anos: “a inevitabilidade do futuro está naquilo que já aconteceu”. Sim, é bem possível que esteja.


Na minha pesquisa, não sei se válida, encontrei aqueles que acham que nada, nunca, virá a ocupar o lugar do livro tradicional: - de papel, na estante ou no colo, agradável ao toque, com algum eventuais anotações
românticas escritas à mão entre as páginas já algo amarelecidas…

Mas encontrei argumentos fortes, também, acerca de florestas dizimadas em favor de livros que, aos milhões, são postos de lado tão logo perdem a actualidade técnica. Encontrei imagens fortíssimas de  armazéns imensos cheios de caixas de livros provenientes de doações, classificados, separados, esperando utilidade em algum lugar que, aparentemente, tarda em surgir.


Milhões também.  Imagens que se repetem em várias cidades de vários países lidando com esse mesmo problema de espaço, real e contundente, impossível de ignorar, e de que se fala pouco.






Numa tentativa de resumo, colocaria de um lado os que ainda estão discutindo a sua preferência pelo livro escrito tradicional, ou pelo electrónico. Como se fosse estética – e não deixa de o ser – ou emocional, essa escolha que parece ainda existir.


No meio, colocaria quem já me oferece dois milhões de livros na compra do tablet, menor que um livro, e capaz de os ler a todos… Cada um deles custando mais barato, sem custos  ambientais tão visíveis, e quase com a mesma portabilidade, além de outras vantagens e defeitos.

E no outro extremo, contrapondo-se de alguma forma – mas firmemente - uma mistura que ainda estou classificando. Imagens difusas, de pessoas. Velhos, crianças. Franjas sociais, sem escolas nem livros. Faltas de oportunidade e oportunidades desiguais. Imagens de livros em língua estrangeira a eles, excedentários… Imagens e questões de todos os tipos, sobrepondo-se.

Razões  pelas quais me questiono quem é quem, nesta crónica chamada mundo, que vamos escrevendo dia após dia...Quem é o excedentário ? E para quem, depurada e criteriosamente, escrevemos nós afinal ? Será sempre para um mesmo público, feito de nós próprios ? Os do costume ? E valerá a pena ?


(fotos:  Google, autoria desconhecida )

80 - AOS AMIGOS

                                                              ( estatueta em barro  "o abraço" de Kay Hall, feita de olhos vendados )



                                  Aos amigos,
                      mais do que as palavras sabem dizer.
                      A evocação silenciosa, na mente,
                      dos momentos tão especiais,
                      partilhados 
                      como sangue em veias comuns.
                      A memória sutil  de detalhes
                      adoçando-nos o olhar
                      que alguns acham ausente.
                      Os pequenos segredos
                      que, tantas vezes, nem são nossos,
                      mas que guardamos a sete chaves
                      nas profundidades da confiança.
                      O conforto de um espelho
                      onde os nossos sentimentos
                      tantas vezes se descobrem
                      acompanhados...

                      Aos amigos, mais que o mundo !

79 - AGUARELA



Se tivesse de pintar em cores
essa  vida de que não falamos nunca,
escolheria  um tom bem escuro
para as zangas e as frustrações.

E haveria talvez outro,
pesado de esperança, carente,
um verde-floresta,
abrindo-se a flores
de outras cores.

E amarelos e laranjas de sol,
espaçados em acasos,
com azuis puros de céu
entre nuvens  intermitentes
e caprichosas.

E um branco
alvar como a alma ,
onde o destino escrevesse
pela mão de alguém,
num desparrame de carinho
e palavras  únicas
- para toda a eternidade
dos instantes.


78 - ESPAÇO DE SER



Criei um novo espaço,  em condições
nas quais não depositava esperanças.
Criei caminhos, que se abriram em emoções…
-despertas umas, adormecidas outras tantas.

E nesse espaço as palavras eram de uma doçura
onde não havia vantagens nem outros prémios.
Apenas um remanso, em caminhos boémios…
despidos de enfeites, cruzados em vontade pura.

( que aconteceu além de hesitações e medos,
e dos projectos de amanheceres vários
das tecnologias nas pontas dos dedos
palavras-passe, endereços, códigos binários... )

Criei um novo espaço condicional, feito de tempo
onde a vida não se escoasse rapidamente,
inflado dos segredos das coisas e do seu alento,
um lugar além dos outros, onde ser eternamente

Um lugar onde a vida sempre me achasse
Quando em alguma eventual procura
nas memórias, um futuro sempre se mostrasse
como uma certeza, em palavras de ternura…


Porto Seguro / Bahia / 2010  ( revisado )

77 - TODOS OS DIAS



Todos os dias surpreendo as minhas palavras.

Ignoro os esconsos dos meus caminhos tantos
e os sons frescos das madrugadas.

Caminho por eles com passos desconhecidos
num ritmo de vez primeira,
em caricias tacteantes de vez primeira,
esculpindo  anseios em gestos de luz.

Procuro-me onde estiver,  sempre,
numa sucessão do que acabam por ser regressos
e bater de portas cinzentas,
sem madrugadas alongando-se
contra o tempo,
e contra a morte cruel do instante
que queria eternizado.

Todos os dias
as minhas palavras se torcem em versos,
ruminam aquelas frases ditas de mil maneiras
até por mim mesmo,  noutras horas,
e são cozinhadas neste sangue
que é um só, e espesso,
e único como um nascer de sol.

Todos os dias
me assino no tempo,
e desenho indelevelmente  esse traço
como uma corda que a vida vai tangendo
e dedilhando com unhas de artista
e que, ocasionalmente,
soa a mim.

Junho 2013

76 - SEMEAMOS




Somos assim, semeadores...
Quem nos olha não vê, nem imagina que exista,
nos gestos com que enchemos os dias,
esse algo mais, composto da subtil essência
com que os dias nos enchem a nós.
Vistos de fora, somos apenas mais uns...
Sentados nos degraus de pedra quente,
no improvável silêncio da noite mais improvável,
nada nos ressalta nem enaltece,
nem ninguém  nos aponta com o dedo,
em estranheza ou  em estranho receio.
E também ninguém sabe,
nem ninguém adivinha que, no calor da pedra,
absorvemos a história da escadaria.
Nem é visível, nos nossos passos erráticos,
o carinho com que tornamos nosso
o percurso dos passos com que tantos outros,
lhe subiram os degraus, antes,
ou os desceram rapidamente,
em  fortuitas lógicas de vida,
e que depois se espalharam pela cidade
como se fossem inconseqüentes...
Por isso, tantas vezes, não se entendem
os sorrisos vagos , nas nossas faces,
ou os cenhos carrancudos da nossa zanga...
Por isso, tantas vezes, nos criticam
os braços erguendo  alto algum brinde,
sem verem que é o momento único,
que mais ninguém viu ou cantou,
que queremos congelado
antes que passe e se esfume
sem que nada lhe dê voz...
Porque é isso que somos:
-Testemunhas.
E, do nosso testemunho,
semeamos histórias.

Semeamos algum sentido...

75 - FIM DE VERÃO






Há um fim de verão, nas ondas do meu mar.
Um calor que é meu, e diferente,
que extraí  e sintetizei, como seiva fosse,
das profundezas formidáveis dos momentos.
Das andanças por lugares só meus,
que percorri de mãos dadas com um fado
muito maior que o meu destino.
E que agora são já caminhos.

Há , sim, um fim de Verão, nas ondas do meu mar.
Mas sou já Outono.
Quente, ainda, e carregado
com todas as cores do Verão.
Sem folhas  soltas correndo pelo chão, fenecidas,
arrastando-se sobre as pedras lisas
com o som grave do fogo crepitando nas fogueiras.
Porque minhas folhas , são sonhos que o vento leva,
e em cada uma delas a minha paixão desmesurada:
- meu grito de amor que nada, nunca, igualará.

Por isso, minhas folhas irão tendo de mim mais do que eu.
Levar-me-ão em todos os poemas que eu for sendo,
e talvez por mim acendam estrelas, únicas como diamantes,
dando vozes a silêncios e madrugadas.
Eternizarão brilhos de vela em olhos lindos,
raízes de memórias em flor ladeando trilhas de tempo.
Areias quentes em enseadas de prata incontrastada.
Bosques de gestos frondosos, regendo um enorme concerto
de milhares de ternuras subtis,  sincronizadas
pelas partituras voláteis dos momentos …
Talvez por isso aquele tronco desnudo lá na frente,
qual maestro,  pára-raios da estranheza
sob um luar de todas as descobertas.

Imperceptíveis  na noite do deserto, alastrando-se,
dunas e veludos,  em narinas de camelos…

E por isso, só por isso,  jamais serei  Inverno.


74 - A TODOS OS POETAS



Pintamos com nossas cores  os sentimentos,
e aqueles congelados momentos
a que damos vida e emprestamos sonhos.
Eternizamos subtilezas
em cronogramas intemporais,
que musicamos com a nossa voz.
Ao que já era, damos foco
e, com sorte,  substância e ritmo,
luz e sombra, em suaves alternâncias.
Temos conosco uma responsabilidade acrescentada
por essa consciência mais que física,
de quem interpreta a vida em etéreas vibrações
de suaves consonâncias,
acrescentando-lhe algo além da beleza.
È isso que fazemos, em persistentes onanismos
rebuscados de canetas e teclas...
Dando-lhe nome,
fazemos poesia em prazerosas dores e vagares,
e inevitáveis fascínios pessoais,
em renovadas vagas de repetição,
que mais não são
do que uma  tautologia,
um outro foco, uma outra sintonia,
uma mesma velha coisa
numa outra maneira de dizer...
Algo que toda a gente já via,
mas não conseguia ver !

Mas o que não temos ainda, e nunca teremos,
é  a poesia, ela mesma....
Ela, algo que não se pesa, nem se vê,
e da qual  não somos donos, nem amos
-apenas a acordamos,
em quem nos lê...

 Ou não !..


73 - O VELHO DOS OLHOS DE POETA

Todos acabaram vendo aquele velho lá na praça
Sentado ao sol, comendo, num banco acomodado,
Olhando tudo com o ar meio feliz, meio sem graça
De quem repousa e, aos poucos,  vai ficando  saciado.

Tinha aquele olhar brilhante e meigo, de Poeta,
E quem o olhasse assim, na praça, bem ao meio,
Não saberia  dizer se ele viera naquela bicicleta
Encostada ali de frente,  na beirada  do passeio.

E quem soubesse não poderia dizer, afiançando,
Como fora que ali chegara o velho dos olhos de poeta,
Se chegara apenas empurrando-a  e caminhando,
Ou se nela viera sentado, pedalando na velha bicicleta.

E foi assim que começou a lenda dele, foi nesse dia.
De repente chegava,  e não tinha hora para chegar,
E isso também era uma coisa que nunca ninguém  via:
O momento exacto daquele velho forte se aproximar.

Ele gostava de sol, mas dava no mesmo quando chovia.
Escondia-se um pouco no coreto, até a chuva passar
Mas logo regressava ao banco, onde toda a gente o via,
Ali no meio da praça, apenas, e andava longe o seu olhar …

E todos os dias chegava,  e aquele banco era já pertença sua…
Vinha de onde, o Poeta ? - como lhe chamavam agora-
Para onde ia, quando se ia o sol e, à tarde, sucedia a lua ?
E regressava de onde quando ao dia precedia a aurora?

As crianças gostavam dele, e das histórias que contava.
As senhoras,  dos seus cumprimentos de cavalheiro.
Os homens da ameaça que por certo não representava
E da esquadra de polícia podiam vê-lo o dia inteiro.

Mas era bom, o velhote, e  gentil com toda a gente.
As senhoras davam-lhe roupa e comida, que agradecia
Sorrindo, com um ar tão feliz, e tão sinceramente,
Que ninguém levava a mal quando ele também as dividia.

Porque as suas mãos que recebiam,  também davam
E na meiguice dos  seus olhos de Poeta, meio vagos,
Havia um carinho grande por aqueles que precisavam.
Nos olhos trazia carinho, mas na alma trazia cuidados.

E nunca aconteceu faltar-lhe  nada do que ele queria
Nem ele faltou com carinho aqueles a quem acarinhava
Nem precisou  deixar de dividir nada com quem dividia
Ou tampouco  de abandonar o banco onde se sentava…

As pessoas habituaram-se com ele, e assim  foi acontecendo,
Que elas mesmo foram  repartindo o pouco que lhe davam,
E quando o velho se apercebeu  que assim estava sendo
Olhou em volta e sorriu feliz vendo como todos  partilhavam.

Então um dia, mesmo não tendo hora, chegou tarde o Poeta.
E as pessoas nem notaram , e ninguém realmente  reparou
Naquele velho forte, caminhando ao lado da velha bicicleta,
Que veio vindo até ao meio da praça, e ao lancil a encostou.

E no dia seguinte, quando  amanheceu  sozinha a bicicleta
La no meio da praça, em frente aquele  banco de jardim
Onde tantas vezes se sentara o velho de olhos de poeta
Perguntavam-se:  “Que Poeta era esse, que se foi assim ?”

Sem saberem bem o que fazer com a velha bicicleta
Deixaram-na ali mesmo,  e dali ela nunca foi roubada.
E muitos sentiram a ajuda do velho de olhos de Poeta
Enquanto pedalavam, fossem adultos ou criançada…

Jan/2013

17 de jul. de 2013

72 - LIVROS DIGITAIS ( crónica )




Queria comprar um tablet, há uns tempos atrás. Pesquisava a esse respeito num oceano de promoções todas elas tentadoras,  quando uma delas me  atraiu olhar com uma frase simples, lançada quase com displicência para o meio daquela efervescência toda, das marcas, dos números, das vantagens:  - Compre um dos nossos, e ganhe dois milhões de livros.

Intrigou-me. E fez com que uma outra questão acabasse por impor-se a tudo o que estava fazendo: - o livro, tal como o conhecemos, que futuro terá ? Pesquisei um pouco mais, e acredito que acabei comprovando uma frase de há muitos anos: “a inevitabilidade do futuro está naquilo que já aconteceu”. Sim, é bem possível que esteja.

Na minha pesquisa, não sei se válida, encontrei aqueles que acham que nada, nunca, virá a ocupar o lugar do livro tradicional: - de papel, na estante ou no colo, agradável ao toque, com algum eventuais anotações românticas escritas à mão entre as páginas amarelecidas…

Mas encontrei argumentos fortes, também, acerca de florestas dizimadas em favor de livros que, aos milhões, são postos de lado tão logo perdem a actualidade técnica. Encontrei imagens fortíssimas de  armazéns imensos cheios de caixas de livros provenientes de doações, classificados, separados, esperando utilidade em algum lugar que, aparentemente, tarda em surgir. Milhões também.  Imagens que se repetem em várias cidades de vários países lidando com esse mesmo problema de espaço, real e contundente, impossível de ignorar, e de que se fala pouco.

Numa tentativa de resumo, colocaria de um lado os que ainda estão discutindo a sua preferência pelo livro escrito tradicional, ou pelo electrónico. Como se fosse estética – e não deixa de o ser – ou emocional, essa escolha que parece ainda existir.

No meio, colocaria quem já me oferece dois milhões de livros na compra do tablet, menor que um livro, e capaz de os ler a todos… Cada um deles custando mais barato, sem custos  ambientais tão visíveis, e quase com a mesma portabilidade, além de outras vantagens e defeitos.

E no outro extremo, contrapondo-se de alguma forma – mas firmemente - uma mistura que ainda estou classificando. Imagens difusas, de pessoas. Velhos, crianças. Franjas sociais, sem escolas nem livros. Faltas de oportunidade e oportunidades desiguais. Imagens de livros em língua estrangeira a eles, excedentários… Imagens e questões de todos os tipos, sobrepondo-se. 

Razões  pelas quais me questiono quem é quem, nesta crónica chamada mundo, que nós escrevemos, dia após dia...E para quem, depuradamente, criteriosamente, escrevemos nós afinal? Será sempre para um mesmo público, feito de nós próprios ?  E valerá a pena ?

10 de jul. de 2013

71 - POR MUITOS ANOS





                             Por muitos anos
                              guardei nas palavras não ditas
                              as histórias secretas
                              daquelas poucas que dizia.

                               Como se fossem um cofre
                               que não parasse de crescer
                               onde eu fosse guardando
                               em permanentes cuidados
                               tudo o que não fui capaz de dizer
                               na hora certa.

                               Todos os desejos não expressos.
                               Todos os votos não feitos.




Porto Seguro / Villagio Arco Balleno
2011 ( revisada)